As aventuras e desventuras do Jovem EMANUEL

O Emanuel não deixava ninguém indiferente. Ousava ser tudo aquilo que a consciência lhe dizia e o coração lhe segredava. Por isso, era amado e odiado. Detestava o egoísmo e a hipocrisia e isso causava-lhe sérios problemas pois o que pensava e dizia incomodava as ideias feitas das pessoas, as tradições e hábitos sociais e os costumes religiosos e políticos.
 
Nascera quase por acaso numa cidadezinha do interior numa família humilde. Viveu quase toda a sua vida numa outra cidade para onde fora depois de os pais terem sido refugiados num país estrangeiro. O pai tinha uma fábrica de móveis e a mãe, que estava desempregada, dedicava-se às lides da casa e ainda cuidava do quintal e das galinhas e coelhos.
 
Apesar de toda a vizinhança o considerar um bom menino, o pai e a mãe sentiam que era uma criança especial e consideravam a sua vida um dom de Deus. Andava na escola e na catequese como toda a miudagem e as suas brincadeiras e traquinices eram as normais e habituais para a sua tenra idade.
 
Pelos doze anos, por ocasião das férias da Páscoa, fora com os pais numa excursão à capital e, no meio de tantos turistas, perderam-se uns dos outros. Depois de o terem procurado por todo o lado, foram encontrá-lo na catedral a falar com uns sacerdotes. Com a maior serenidade e convicção do mundo, o Emanuel disse-lhes que não tinham por que se preocupar pois já era crescidinho para saber desenrascar-se e eles sabiam muito bem que ele adorava aprender, conhecer e descobrir para ser uma pessoa culta, sendo que as questões da religião interessavam-lhe de forma especial.
 
O Emanuel cresceu com qualquer outra criança, adolescente ou jovem. Era muito fácil ser seu amigo pois, além de inteligente, era simpático e tinha um coração do tamanho do mundo e, tanto os pais como os amigos, sabiam que era capaz de dar a vida por eles se preciso fosse. Além de ajudar a mãe a aspirar, a limpar o pó e a tratar da bicharada, e o pai, sobretudo quando era preciso transportar e montar mobília nas casas das pessoas, gostava muito de estudar, ler, jogar no computador e no tablet e ainda tinha tempo para o grupo de jovens da catequese, para o escutismo e para o voluntariado, no qual gastava muito do seu tempo.
 
Apesar de apreciar divertir-se com os amigos num bar, numa esplanada ou nas festas populares das povoações vizinhas, viam-no muitas vezes sozinho a contemplar a natureza e a rezar. Nunca namorou mas todos o viam entusiasticamente apaixonado pela vida, pelas pessoas, pelo conhecimento e pelo seu Deus.
 
Todos o admiravam pela sua forte personalidade. Fazia sempre e unicamente aquilo que queria e não se deixava influenciar facilmente. Sabia pensar e dialogar com toda a gente e fazia-o com um respeito sagrado pelas opiniões e maneiras de ser e estar dos demais.
 
Um dia, o pai morreu de doença prolongada e o Emanuel sentiu-se sem chão. Aquele que o educara e criara com a mãe partira e parecia que a vida deixara de ter sentido. Sofreu muito nessa ocasião e partilhou intimamente com a mãe essa fase delicada e dolorosa.
 
Após ter concluído o seu curso superior, não lhe apetecia mesmo nada encaixar-se numa sociedade que considerava ser muitas vezes materialista e desumana. Não queria sentir-se uma peça mais de uma engrenagem mecânica sem alma. Não desejava ser mais um numa estrutura anónima e sem rosto, onde imperava o egocentrismo, a maldade e a injustiça e a vida sem esperança e sem futuro.
 
O sonho do Emanuel era ter um papel ativo na renovação e transformação da sociedade. Não podia cruzar os braços e assobiar para o lado como se a construção de um mundo melhor fosse uma utopia ou estivesse apenas nas mãos dos políticos ou nas leis e promessas das religiões.
 
A mãe do Emanuel sentia que o filho ganhara asas mas via-o como um pássaro preso numa gaiola. Um dia, chamou-o e disse-lhe:
 
- Filho, vai! Acredito que Deus tem para ti grandes planos pois nasceste para coisas grandes. Já nada te prende aqui pois és um cidadão do mundo. A sociedade será melhor e ficará diferente contigo. Tu não és meu. Tu és de Deus que te deu a vida e te chama a libertar a humanidade das trevas em que caminha sem sentido. Anuncia boas novas, denuncia o mal e, sobretudo, ama a todos sem exceção e sem medida até à morte.
 
O Emanuel ficou comovido e sem palavras e, depois de um longo abraço à mãe, pegou numa mochila com meia dúzia de coisas e saiu de casa. Teria uns trinta anos e chegara o momento de fazer alguma coisa mais interessante e radical pelos outros.
 
O Emanuel adorava a natureza e gostava muito de caminhar por entre montanhas e vales em vez de utilizar os transportes públicos. Gostava muito de acampar junto ao mar, rios e lagos. Não dispensava surfar umas ondas e pescar longas horas enquanto meditava e orava. O que ele queria era conhecer pessoas e descobrir novas terras. Não acreditava que Deus só gostasse da sua família ou das pessoas da sua terra. Por todo o lado, encontrava gente, culturas e tradições lindas que muito admirava.
 
Foi conhecendo muita gente e de algumas pessoas se fez amigo. Tinha a virtude de não dar importância ao exterior das pessoas e privilegiava o que eram no seu coração. A verdade é que, passadas algumas semanas, eram já doze os amigos que tinham deixado tudo para estarem com ele e viverem o mesmo estilo de vida e a mesma filosofia existencial.
 
O Emanuel gostava de contar histórias cheias de sumo que a todos interpelava e desafiava. Mais que dar lições de moral ou dar respostas às perguntas que lhe faziam, preferia provocar a reflexão, fazer pensar, questionar, desafiar, propor. A sua maneira de ser tornava-o cativante e a sua fama crescia a olhos vistos. Muitos ouviam falar dele e iam ao seu encontro, julgando tratar-se de um reputado político, professor, psicólogo ou médico. A todos recebia com afeto e dava a entender que o essencial era invisível aos olhos e que só se conseguia ver bem com o coração e afirmava que a racionalidade e a Ciência eram incapazes de perceber toda a realidade, dar sentido à existência humana e garantir a felicidade. A todos convidava a olhar para o céu mas com os pés bem assentes na terra.
 
Àqueles que conheciam a família do Emanuel custava-lhes acreditar que daquela cidadezinha da montanha pudesse ter saído alguém como ele e havia quem achasse que ele devia estar louco. A verdade é que o Emanuel não se limitava a fazer desportos radicais com os seus amigos mas a sua vida mesma era radical na forma de ser e estar diante dos outros e de Deus. A sua existência era um verdadeiro milagre sobretudo para aqueles que mais sofriam e eram marginalizados pela sociedade.
 
A polícia começou a preocupar-se com a confusão que se gerava por onde quer que o Emanuel andasse. Ele percorria todas as aldeias, vilas e cidades e não havia shopping, estádio de futebol, igreja, biblioteca ou praça que não recebesse a sua visita. Todos o queriam ver e ouvir. Como estava frequentemente com pessoas moralmente condenáveis pela sociedade, diversas vezes era chamado à esquadra da polícia para prestar depoimento. Era acusado de cumplicidade com vários criminosos pelo facto de ser visto nas suas casas e porque no seu grupo de amigos existiam também algumas pessoas com um passado duvidoso.
 
As autoridades políticas andavam também muito perplexas com o que se dizia do Emanuel. O Presidente da República e o Primeiro-Ministro reuniram-se de urgência e até os deputados da Assembleia da República discutiam o assunto com especial vigor. Se as coisas continuassem daquela maneira, seria como uma bola de neve com consequências imprevisíveis. Dado o carisma e o poder de liderança que o Emanuel evidenciava, facilmente poderia organizar uma rebelião, um ataque terrorista, um golpe de estado. O Emanuel era um perigo público e havia que andar de olho em cima dele e das movimentações dos seus discípulos.
 
Como o Emanuel falava com regularidade de Deus, os líderes religiosos também andavam em pulgas. A verdade é que a forma como falava e, sobretudo, como agia, seduzia muita gente e muitos viam os seus dogmas e as suas instituições ameaçadas. Começaram a considerá-lo um blasfemo e um herege porque ousava pôr em questão hábitos, costumes e tradições.
 
O Emanuel atrevia-se a invocar Deus, que era o Senhor da Terra e dos Céus, o Omnipotente, Omnisciente e Omnipotente, como Pai e defendia que toda a humanidade era chamada à salvação e não só alguns eleitos. Além disso, questionava o aparente exibicionismo e a superficialidade de certos cultos religiosos, defendendo que mais importante que cumprir regras e leis institucionalizadas, aquilo que era essencial era amar a Deus acima de toda a realidade e aos outros como a nós mesmos.
 
Muitos viam-no como um infiel que traíra os valores em que se alicerçava a fé da maior parte das pessoas e acusavam-no de ter fundado uma seita e de se julgar um profeta, um filósofo ou um revolucionário que falava em nome de Deus. E diziam-lhe que o melhor que tinha a fazer era desaparecer do mapa. Se não fosse a bem, teria que ser a mal.
 
O que era incrível era que o Emanuel parecia não temer nada nem recear ninguém. Falava com um desassombro impressionante do Reino de Deus e da necessidade e importância de as pessoas se purificarem, serem melhores e mudarem de vida. Somente assim poderiam ser felizes e salvar-se.
 
Depois de ter saído de casa havia uns três anos sensivelmente, o Emanuel desafiou os amigos a visitar a capital pois podia ser uma forma interessante de viver as celebrações pascais. Acharam a ideia espetacular, apesar de considerarem que as reações da população poderiam ser imprevisíveis. Lá foram e ficaram surpreendidos com o acolhimento festivo de muita gente que incluiu bandeirinhas, cartazes e foguetes.
 
A notícia da presença do Emanuel na cidade era o assunto do momento e a discussão generalizada estava instalada, não havendo ninguém que não tomasse partido a favor ou contra. A imprensa explorou o tema até à exaustão e o sensacionalismo, a contrainformação e os lobbies faziam-se sentir mais que nunca. Multiplicaram-se os programas de televisão e de rádio com acesas conversas sobre o que o Emanuel pensava, dizia e fazia. Ele procurava manter-se afastado de toda aquele pandemónio mas ele e os seus amigos sentiam o aumento das vozes daqueles que lhe desejavam fazer mal.
 
Numa noite em que jantava com os amigos, o Emanuel disse-lhes que temia pela sua vida. Nunca tinha feito mal a ninguém mas a verdade era que havia muitos que não gostavam dele. Disse-lhes que jamais esquecessem aquela noite e aquela refeição, falou-lhes na importância do Amor e insinuou que, ao contrário de Deus que nunca nos abandona, os homens e até aqueles que consideramos amigos, podem abandonar-nos e trair-nos. Todos olhavam uns para os outros com um ar enigmático.
 
No final do jantar, o Emanuel convidou os amigos a ir dar uma volta até um jardim das redondezas e a tomar um café. Depois de lá estarem sentados e deitados na relva havia algum tempo e quando alguns já revelavam sono, um dos amigos do Emanuel chegou com vários polícias. Prenderam-no de forma rude e levaram-no para a esquadra. De consciência tranquila, o Emanuel não ofereceu resistência nem gritou por socorro.
 
Havia denúncias de participação em roubos, tráfico de droga e armas e conspiração com pessoas de má reputação. Algumas autoridades religiosas censuravam-no por estar a destruir o edifício dogmático vigente e defendiam a ideia de que o que merecia era a morte.
 
Levaram-no a tribunal e o juiz também o questionou sobre o que dizia e fazia. O Emanuel sorria com serenidade e em silêncio e, após insistência, dizia que nada tinha feito de mal e que apenas acreditava num reino diferente dos reinos deste mundo.
 
Apesar de ser um assunto de justiça, o representante do governo metia a sua colherada e queria inteirar-se de toda a situação e também interrogava o Emanuel. Nem o poder político nem o poder judicial descortinavam propriamente maldade alguma nele nem havia provas evidentes de que estivesse culpado. Mas, diante das enormes pressões populares e institucionais, preferiram lavar as mãos daquela situação e o Emanuel foi condenado e enviado para a prisão.
 
À saída do tribunal, muitos começaram a vociferar contra ele e a esbofeteá-lo, com a indiferença da polícia e diante de inúmeros jornalistas e câmaras de televisão.
 
Nas instalações prisionais, era maltratado frequentemente pelos guardas e até os outros prisioneiros se metiam e gozavam com ele. Havia uns poucos que simpatizavam com o Emanuel mas a maior parte cuspia-lhe, pontapeava-o, dava-lhe murros e ofendia-o. Não respondia com a mesma moeda pois queria ser fiel aos seus valores e aos princípios em que acreditava e alguns prisioneiros ouviam-no dizer baixinho, de vez em quando:
 
- Perdoa-lhes Pai, porque não sabem o que estão a fazer!
 
Por volta das três da tarde, depois de uma valente tareia no pátio da prisão, olhou para o céu e caiu para o chão, ficando ali estendido morto de braços abertos.
 
Quando os amigos e familiares do Emanuel souberam do sucedido, ficaram incrédulos, consternados e desesperados e foram buscá-lo. A sua mãe estranhou ao ver a sua mão direita fechada e, abrindo-a, viu dois pequenos paus unidos com um baraço em forma de cruz. Lembrou-se imediatamente que fora o seu marido que lhe oferecera em criança.
 
Após as formalidades legais, a agência funerária levou o corpo do Emanuel e fez-se o funeral. A mãe do Emanuel estava desolada e não tinha nem lágrimas nem palavras. Aparentava uma serenidade que parecia querer dizer e acreditar que aquilo não era o fim da vida do filho.
 
A notícia da morte trágica do jovem Emanuel abriu os telejornais e foi capa de jornais em todo o mundo. Durante muito tempo não se falou de outra coisa e havia a convicção generalizada de que o mundo não voltaria a ser o mesmo. Mais do que matarem o Emanuel, o que acontecera mesmo fora ele próprio ter querido dar a sua vida.
 
O Emanuel tinha concluído a sua existência como a tinha vivido. A fé, as convicções e a coerência de uma vida pautada pelo amor e pelo altruísmo jamais seriam esquecidas e muitos quiseram seguir e imitar a sua maneira de pensar e viver a vida e sentiam-no mais vivo e presente que nunca. Uma pessoa tão singular como o Emanuel viveria para sempre nos corações daqueles que tiveram o privilégio de conhecer a sua mensagem e o consideraram um verdadeiro filho de Deus.
 

 

Paulo Costa

Conto.

O Paulo Costa é licenciado em Teologia e mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade de Teologia da UCP do Porto e tem uma Pós-graduação/Especialização em Educação Sexual pelo Instituto Piaget. É autor de alguns livros na área da Fé e Adolescência. É professor de EMRC no Colégio Liceal de Santa Maria de Lamas. É um bloguer.

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