Ano da Vida Consagrada: “Quero conhecer o Deus da Sulamita”

Aconteceu em Bissau. Ela foi encontrar-se a casa de um primo para seguirem depois para outro lugar. O primo demorava. Ela sentou-se e pegou numa bíblia que estava ali na sala. Os cristãos que conheci na Guiné têm o hábito de ler as escrituras, como quem petisca. Ela não era cristã e não conhecia a bíblia. Abriu ao calhas, e calhou o Cântico dos Cânticos. Começou a ler o elogio do corpo da amada, os suspiros dela pelo amado que chega saltitando sobre os montes, o coro das amigas da noiva que não entendem o porquê de tanto entusiasmo e de amor tão arrebatado.
 
Voltou à capa: “Bíblia Sagrada” era o que estava escrito. Voltou ao Cântico dos Cânticos, já não ao calhas. E não ao meio do livro, mas ao princípio: “Que ele me beije com os beijos da sua boca! As tuas carícias são melhores que o vinho… Arrasta-me atrás de ti! Vamos fugir! Que o meu rei me faça entrar nos seus aposentos…”
 
O primo chegou entretanto: “Vamos?”
“Posso levar a tua bíblia comigo?”
 
À noite leu o livro do Cântico dos Cânticos de um fôlego só. À luz da vela, claro, porque há sempre este romantismo num país onde quase não há luz elétrica. Dormiu mal. Quer dizer, ficou bem acordada. As palavras andavam-lhe às voltas dentro do corpo. Nessa noite decidiu tornar-se cristã. Foi há quatro anos. Foi baptizada na Vigília Pascal do ano passado. Contou-me esta história quando eu lhe perguntei porque se tinha tornado cristã. Chegou à intuição, naquela noite do Cântico dos Cânticos, que “um Deus que fala de amor assim, tem de ser O verdadeiro!” Foi assim mesmo, com estas palavras. “Quero conhecer o Deus da Sulamita.”
 
Começou o catecumenado e apaixonou-se quando lhe falaram de Jesus. Olha sempre para ele, até hoje, na perspectiva do Livro dos Amores que a converteu. O Deus que fala de amor assim, afinal, é o Deus de Jesus, e ele é a Palavra máxima desse dizer amoroso de Deus.
 
É uma mulher linda, já agora. Ainda não tem trinta anos e vende fruta na praça. O sorriso é de ouro e a Fé tem toda a energia e encanto de uma criança feliz.
 
Acho que a vou guardar para sempre no coração, porque me emocionou muito o click da conversão dela. Convertida pelos amores daqueles dois que fazem o Cântico dos Cânticos, repousa a sua Fé na certeza absoluta de um Deus que só é Bom e de um Jesus que é perito em Humanidade.
 
Faz-nos falta esta ternura, o encanto de quem ama, a evidência de sermos gente fascinada e acarinhada! Fazemos vezes demais da Vida Consagrada um lugar de vidas desgraçadas. Tornamo-nos pesados e sisudos, perdemos a graça e a beleza. É tão feio ser feio!
 
Há umas semanas, nas minhas andanças missionárias, pus-me a ler, num encontro de formação para catequistas, o Cântico dos Cânticos. Entre os risinhos e os comentários para o lado, algumas caras torcidas e um ou outro que se levantou, lembro-me melhor daquele que se foi embora desabafando: “Não vim aqui p’ra ouvir poesia!”
 
Somos uns toscos. Fazemos da Fé uma doutrina ou uma moral, um culto insípido ou um ritual de devoções, e depois vê-se na nossa cara que damos ares de gente mal amada. Há mulheres consagradas que explicam a sua vocação dizendo que se “casaram com nosso senhor”, mas quem as vê deve desconfiar muito desse marido, porque elas têm cara de gente que sofre de violência doméstica! Há homens consagrados que explicam a sua vocação como uma “doação total a deus e aos outros”, mas depois não conseguem não se comportar como solteirões embrutecidos, atabalhoados nas emoções e mais afectados que afectuosos.
 
Era tão bom se nos vissem como gente especializado em ternura! Gente d’amores e d’esperanças: essa é a nossa vocação. Consagrar-se é atrelar-se a um grande amor, dar-lhe trela e ir atrás. Preferia que fôssemos trapalhões no cerimonial litúrgico, mas fôssemos mestres nas coreografias do cuidado e da atenção aos outros. Preferia que nos enganássemos nas páginas e nas fitinhas todas dos breviários, mas conversássemos com Jesus com a naturalidade e o carinho com que se fala com quem se partilha vida, mesa e cama. Às vezes parece que ainda nos estorva o amor! Queremos mais ser sérios do que amáveis, e essa seriedade torna-se uma inimiga do Testemunho do Reino e da Alegria do Evangelho.
 
Deus sabe de Amor. A maior prova é Jesus. Amor que ganha corpo e voz e toque e pele e hálito e movimento de gente! Podemos levar a vida toda a perceber que não nos convertemos a Jesus por dever ou por repetição. A gente só se converte por fascínio! Mudamos quando nos mudamos para a vida de outro. Consagrar a Vida é “juntar os trapinhos”.
 
“Um Deus que fala de amor assim, tem de ser O verdadeiro!”
Para quê escrever tanto? Está tudo aqui.
 

Rui Santiago

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