As transformações deste tempo são radicais: é essencial compreendê-las

Razões para Acreditar 22 maio 2018  •  Tempo de Leitura: 10

É essencial assinalar, ainda que de maneira sumária, algumas mudanças no paradigma sociocultural. A primeira diz respeito ao próprio conceito de cultura, que deixou de ter a originária aceção intelectual iluminista de aristocracia das artes, ciências e pensamento, mas assumiu características antropológicas transversais a todas os setores do pensar e agir humano, recuperando a antiga categoria de "paideia" e "humanitas", os dois termos que indicavam a cultura nos clássicos (vocábulo então desconhecido, a não ser para a "agri-cultura"). Por isso o perímetro do conceito é muito amplo e envolve, por exemplo, a cultura industrial, camponesa, de massa, feminina, juvenil e assim por diante.

 

Ela exprime-se, além de nas civilizações nacionais e continentais, também em linguagens comuns e universais, verdadeiros e novos "esperantos", como a música, o desporto, a moda, os meios de comunicação social. Uma consequência evidente disto está no fenómeno do "multiculturalismo", que todavia é um conceito estático de pura e simples coexistência entre diferentes grupos étnicos e civilizações: mais significativo é quando se torna "interculturalidade", categoria mais dinâmica que supõe uma forte interação através da qual as identidades entram em diálogo, mesmo que árduo, entre elas. Este encontro é favorecido pelo urbanismo, cada vez mais dominante.

 

Ao dado positivo da osmose entre as culturas associam-se alguns corolários problemáticos entre si antitéticos. Por um lado, o sincretismo ou o "politeísmo dos valores" que enfraquece os cânones identitários e os próprios códigos éticos pessoais; por outro, a reação dos fundamentalismos, dos nacionalismos, dos "soberanismos", dos populismos, dos regionalismos (tanto que agora falamos de "glocalização", que está a minar a ainda dominante globalização). A erosão das identidades culturais, morais e espirituais e a própria fragilidade dos novos modelos ético-sociais e políticos, a mutabilidade e aceleração dos fenómenos, a sua fluidez quase aeriforme (codificada agora na simbologia da "liquidez" concebida por Bauman) incidem evidentemente também sobre a antropologia.

 

 

O tema é obviamente complexo e admite múltiplas análises e resultados. Referimos apenas o fenómeno do eu fragmentado, ligado ao primado das emoções, àquilo que é mais imediato e gratificante, à acumulação linear das coisas mais do que ao aprofundamento dos significados. A sociedade, com efeito, procura satisfazer todas as necessidades, mas extingue os grandes desejos e ilude os projetos mais amplos, criando assim um estado de frustração e, acima de tudo, a desconfiança no futuro. A vida pessoal é saciada por consumos, e no entanto está vazia, desvanecida e por vezes até espiritualmente extinta. Floresce, assim o narcisismo, ou seja, a auto-referencialidade, que tem vários emblemas simbólicos, como a "selfie", os auscultadores ou mesmo o "rebanho" homologado, a discoteca ou a exterioridade corpórea.

 

Mas há também a deriva antitética da rejeição radical, expressa através do protesto, a intimidação ("bullying"), a violência verbal nos painéis informáticos ou a indiferença generalizada, mas também com a queda na toxicodependência ou o suicídio em idade jovem.

 

Configura-se, portanto, um novo fenótipo da sociedade. Para tentar uma exemplificação significativa - remetendo para o resto para a infinita documentação sociológica elaborada de modo contínuo -, propomos uma síntese através de uma frase do filósofo Paul Ricoeur: «Vivemos numa era em que a bulimia dos meios corresponde à atrofia dos fins».

 

 

Domina, com efeito, o primado do instrumento em relação ao significado, especialmente se último e global. Pensemos na prevalência da técnica (a chamada "tecnocracia") na ciência; ou no domínio da finança na economia; no aumento de capital mais do que no investimento produtivo e laboral; no excesso de especialização e na ausência de síntese em todos os campos do conhecimento, incluindo a teologia; na mera gestão do Estado relativamente ao verdadeiro projeto político; na instrumentalização virtual da comunicação que substitui o encontro pessoal; na redução das relações à mera sexualidade que marginaliza e eventualmente erode o "eros" e o amor; no excesso religioso devocional que pretende alimentar a fé autêntica, e assim por diante.

 

Outro exemplo social que antecipa o discurso mais específico, que avançaremos mais tarde, é aquele expresso por uma declaração há muito formalizada: «Não há factos, apenas interpretações», afirmação que envolve um tema fundamental como o da verdade (e também da "natureza humana"). O filósofo Maurizio Ferraris comentava: «Frase poderosa e prometedora esta sobre o primado da interpretação, porque oferece a mais bela das ilusões: a de ter sempre razão, independentemente de qualquer negação».

 

Pense-se no facto de que agora os políticos mais poderosos empunham sem hesitação as suas interpretações e "pós-verdade" como instrumentos de governo, fazendo-as proliferar de modo a torná-las aparentemente "verdadeiras". Ferraris concluía: «O que pode ser um mundo ou mesmo uma democracia na qual aceitamos a regra de que não há factos, mas apenas interpretações?». Sobretudo quando essas notícias falsas são de uma manobra enganadora ramificada ao longo das artérias virtuais da rede informática? Finalmente, abordamos apenas com uma evocação a questão religiosa. A "secularidade" é um valor típico do cristianismo na base do axioma evangélico «dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus», mas também da própria encarnação de Jesus, que não elimina a carne ("sarx") por uma gnose espiritualista. Precisamente por isso, toda a teocracia ou hierocracia não é cristã, como não o é o fundamentalismo sagrado, apesar das recorrentes tentações nesse sentido.

 

Há, no entanto, também um "secularismo" ou "secularização", fenómeno amplamente estudado (veja-se, por exemplo, o imponente e famoso ensaio "The secular age", de Charles Taylor, 2007), que se opõe claramente a uma coexistência e convivência com a religião. E isto acontece através de vários percursos: façamos emergir dois mais subtis (a perseguição explícita é, evidentemente, mais evidente, mas está presente em âmbitos circunscritos). O primeiro é o chamado "apateísmo", isto é, a apatia religiosa e a indiferença moral para as quais que Deus exista ou não é totalmente irrelevante, tal como nebulosas, intermutáveis e subjetivas são as categorias éticas.

 

É o que está bem descrito pelo papa Francisco na "Evangelii gaudium": «Na cultura dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência.  Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas» (n. 62). O pontífice introduz ainda o segundo percurso ligando-o ao precedente: «O processo de secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além disso, com a negação de toda a transcendência, produziu-se uma crescente deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um aumento progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação generalizada» (n. 64).

 

Concluindo, é no entanto importante reiterar que a atenção às mudanças no paradigma sociocultural nunca devem ser um ato de mera execração, nem a tentação de retirar-se para oásis sacrais, remontando nostalgicamente a um passado mitológico. O mundo em que hoje vivemos é rico de fermentos e desafios dirigidos à fé, mas é também dotado de grandes recursos humanos e espirituais, dos quais os jovens são muitas vezes portadores: basta mencionar a solidariedade vivida, o voluntariado, o universalismo, o anseio pela liberdade, a vitória sobre muitas doenças, o extraordinário progresso da ciência, a autenticidade testemunhal exigida pelos jovens às religiões e à política, e assim por diante. Mas este é outro capítulo muito importante para escrever em paralelo ao esboçado até agora.

 

 

[Card. Gianfranco Ravasi | In Avvenire]

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