Domingo III da Páscoa: «FICA CONNOSCO, SENHOR!»

Liturgia 30 abril 2017  •  Tempo de Leitura: 11

1. O Evangelho deste III Domingo da Páscoa convida-nos a fazer aquela que pode ser considerada a mais bela viagem de doze quilómetros de toda a Escritura. A viagem que nos leva de Jerusalém a Emaús, atual aldeia palestiniana de nome El-Kubèibeh, que guarda a memória deste maravilhoso episódio de Lucas 24,13-35.

2. Aperceber-nos-emos, porém, rapidamente que se trata menos de uma viagem transitiva sobre o mapa, e mais, muito mais, de uma viagem intransitiva nas estradas poeirentas do nosso embotado coração. É assim que dois deles (dýo ex autôn) – e está aqui assinalada uma rutura destes dois com a comunidade reunida em Jerusalém – saem da comunidade. O texto retrata-os bem: estão em dissensão com a comunidade, pelo caminho conversam familiarmente (homiléô) sobre as coisas acontecidas em Jerusalém (Lucas 24,14 e 15), mas também debatem (syzêtéô) (Lucas 24,15), e entram mesmo em dissensão um com o outro, opondo argumentos (antibállô) (Lucas 24,17).

3. Estando assim as coisas, narra o texto que um terceiro viajante, que é Jesus – informa-nos o narrador –, se aproximou deles e caminhava comeles, mas os seus olhos estavam impedidos de o reconhecer (Lucas 24,15-16). Neste ponto preciso, impõem-se duas pequenas anotações. Primeira: Jesus é sempre aquele que caminha com, faz conjunção, onde nós, e quando nós, estamos em disjunção. E não caminha connoscoapenas algum tempo. Caminha connosco sempre, pois o verbo grego está no imperfeito de duração (syneporeúeto): caminhava com. Segunda: não é a incapacidade deles ou a nossa que nos impede de reconhecer Jesus. Na verdade, o texto diz, na sua crueza, que os seus olhos estavam impedidos (ekratoûnto). O verbo grego está num imperfeito passivo. Entenda-se corretamente: é Deus que impede os nossos olhos de o reconhecerem agora. Esta indicação deixa-nos alerta para o momento em que Deus vai desimpedir os nossos olhos para o reconhecermos.

4. Este terceiro, que caminha sempre connosco, e que faz conjunção sobre as nossas disjunções, é também aquele que conduz o nosso caminho. Ele é o Presidente. Preside sempre. Por isso, começa a fazer perguntas: «Que são estas palavras que opondes entre vós enquanto caminhais?» (Lucas 24,17). Ele é o Mestre que nos faz perguntas pedagógicas, para nós nos dizermos. A primeira consequência em nós desta pergunta certeira é fazer com que mostremos a nossa tristeza e desilusão: «E eles pararam com o rosto triste» (Lucas 24,17). E depois, atónitos, perguntamos: «Tu és o único (mónos) estrangeiro residente (pároikos) em Jerusalém que não conheces as coisas que nela aconteceram nestes dias?» (Lucas 24,18). E ele pergunta outra vez pedagogicamente: «O que foi?» (Lucas 24,19). Duas anotações. Primeira: sem o sabermos, fazemos uma afirmação correta: de facto, ele é o únicoque conhece as coisas de outra maneira. Segunda: quando ele pergunta: «O que foi?», é para nos levar a dizer a desilusão e o sem-sentido que nos habita. Ele é o Mestre que faz as perguntas, para depois corrigir as respostas (Lucas 24,25-27).

5. Nestas conversas guiadas, parece que o caminho se encurtou. Estão em Emaús. E, chegados aí, Jesus fez como se (prosepoiêsato: aor. de prospoiéomai) fosse caminhar para mais longe (Lucas 24,28). «Fez como se» é uma finta pedagógica. O texto não diz que ele ia caminhar para mais longe. Diz que Ele «fez como se fosse…». Finta pedagógica, que provoca logo a nossa oração: «Fica connosco…» (Lucas 24,29). Atenção, portanto: também a nossa oração é provocada por ele. Ele é o Mestre, o Presidente.

6. No seguimento do nosso pedido, ele entra para ficar connosco. Não apenas algum tempo, como fazemos nós quando visitamos os amigos. Ele entra para ficar connosco sempre, para presidir à nossa vida toda. Preside, portanto, à nossa mesa: recebe o pão, bendiz a Deus, parte o pão e dava (epedídou: imperf. de epidídômi), imperfeito de duração. Atitude que continua ainda hoje. É aqui que são abertos (por Deus) os nossos olhos, antes impedidos por Deus de reconhecer Jesus. Decifração da Cruz. Ele está vivo e presente. A sua vida é uma vida a nós dada. Sempre a ser dada, dado que, se dar reclama a presença do dom do doador ao donatário, dar-se reclama a presença do doador no donatário. É agora e daqui que vemos a luzinha que ele acendeu já no nosso coração, no caminho… Não é o escuro da noite exterior que nos mete medo. O que nos mete medo é o escuro interior. Ei-los que partem em plena noite para Jerusalém. Viagem da conjunção, fazendo o caminho inverso da primeira viagem da disjunção.

7. Ainda hoje é bom e salutar fazer esta viagem no mapa e no coração a Emaús (El-Kubèibeh). O peregrino encontra nesta aldeia árabe uma igreja, à guarda dos Padres Franciscanos da Custódia da Terra Santa, que recorda os acontecimentos narrados no sublime episódio de Lucas 24, que acabámos de recordar. A atual igreja é uma construção de inícios do século XX, estilo românico-gótico de transição, que respeita as linhas e integra algumas pedras de uma igreja construída pelos Cruzados no século XII. Esta igreja encontrava-se ainda de pé no século XIV, mas estava já em ruínas no século XV, de acordo com o testemunho de peregrinos qualificados. Esta construção dos Cruzados enquadra aquilo que se pensa serem os fundamentos da casa de Cléofas, um dos dois que, naquele primeiro dia da semana (Lucas 24,1 e 13), se dirigiam para uma aldeia, chamada Emaús, que distava 60 estádios (11-12 km) de Jerusalém.

8. Nas paredes desta igreja, pode ler-se em várias línguas um belo e significativo poema, que aqui passa também a conhecer o português: «Todos os dias/ Te encontramos/ no caminho./ Mas muitos reconhecer-Te-ão/ apenas/ quando/ repartires connosco/ o Teu pão./ Quem sabe?/ Talvez/ no último entardecer».

9. E o poeta inglês Thomas S. Eliot faz esta evocação da cena de Emaús: «Quem é o terceiro, que vai sempre ao teu lado? Se me ponho a contar, juntos vamos apenas eu e tu. Porém, se olho à minha frente sobre a estrada branca, vejo sempre outro que caminha ao teu lado. Quem é esse que vai sempre do outro lado?».

10. É o Senhor, que vós entregastes à morte, mas que Deus ressuscitou, responde Pedro, falando ao povo no dia de Pentecostes (Atos 2,14.22-33). Reside aqui, não apenas o essencial do anúncio, mas o anúncio essencial, sem glosas e sem filtros, que somos chamados a fazer, com alegria e determinação (Atos 2,23-24). Este veio fundamental percorre, como verdadeira filigrana, o Livro dos Atos dos Apóstolos: 2,23-24.32.36; 3,15-16; 4,10; 5,30-31; 10,39-40; 13,28-30; 17,31; 25,19. Chamemos-lhe «primeiro anúncio», ou, como já se diz hoje, nesta sociedade que já recebeu o «primeiro anúncio», mas que vive distante da seiva do Evangelho, «segundo (primeiro) anúncio».

11. Pedro continua a ensinar-nos que vivemos aqui como «estrangeiros e hóspedes», isto é, como «paroquianos» (paroikía), mas que, como Jesus e à sua maneira, somos também filhos e chamamos a Deus «nosso Pai». E é neste Senhor Jesus que, conforme desígnio eterno do Pai, deu a vida por nós, temos posta a nossa fé e a nossa esperança, muito para além das coisas corruptíveis, como prata e oiro, e de tudo o que se avalia, mede ou pesa (1 Pedro 1,17-21). É-nos pedida, portanto, vida nova de acordo com o estatuto concedido.

12. Portanto, «o Senhor sempre diante de mim», cantamos hoje com o Salmo 16,8. Só Ele nos pode guiar no caminho da vida. Na verdade, as pedras e as coisas, as casas e as terras, nunca devem ocupar, muito menos encher, o nosso coração. Os sacerdotes, descendentes de Aarão não tinham terra distribuída em Israel. A sua herança era o Senhor (cf. Números 18,20). E nós também cantamos no nosso Salmo de hoje, o Salmo 16, «Senhor, Tu és a minha herança» (v. 5). No seu Sermão 344, Santo Agostinho comenta assim: «O salmista não diz: “Ó Deus, dá-me uma herança”. Diz antes: “Tudo o que me podes dar fora de Ti, é vil. Sê Tu a minha herança. É a Ti que eu amo… Esperar Deus de Deus, estar cheio de Deus. Basta-te Ele; fora dele, nada te pode bastar». Esta melodia deve encher o nosso coração e este Dia de Domingo, Dia do Senhor, de doação radical, total, ao Senhor. Entenda-se: é um caminho novo que se abre à nossa frente. Sem retrocessos, sem desvios, sem distrações, sem nostalgias, sem saídas de emergência ou de segurança!

O Bispo D. António Couto publica os artigos no blogue Mesa de Palavras

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