Corpo de Deus: A carne humana, a vida de Jesus

Liturgia 15 junho 2017  •  Tempo de Leitura: 11

A Igreja celebra esta quinta-feira a solenidade do Corpo de Deus, festa teológica e dogmática instituída no séc. XIII para afirmar a doutrina eucarística contra quantos a interpretavam de maneira não conforme à Igreja romana. O novo ordenamento litúrgico manteve essa festa, que se torna assim ocasião para compreender melhor o grande mistério da Eucaristia e para adorar o corpo e sangue do Senhor, esse corpo que Ele deu e esse sangue que derramou por toda a humanidade, amando-a até ao extremo.

 

O trecho do Evangelho segundo João proclamado na liturgia é extraído do capítulo 6, dedicado à narração da multiplicação dos pães, às palavras de Jesus que explicam esse acontecimento e depois respondem às perguntas e às contestações dos seus ouvintes. A perícope proclamada na missa (versículos 51 a 58) é breve mas muito densa, como emerge das cinco palavras que nela ocorrem várias vezes, como uma espécie de fio condutor: «comer», «beber/bebida», «carne», «sangue», «vida/viver».

 

Escutamos antes de tudo uma declaração de Jesus: «Eu sou o pão vivo, descido do Céu». Os ouvintes são remetidos por Jesus não para alguma coisa com carácter de extraordinário, de grandeza, de força, mas para a humilde realidade do pão que cada um come diariamente para se sustentar e que muitos têm de procurar, por vezes até mendigar na sua pobreza. O pão, esse alimento humilde e simples, mas que é o símbolo da vida, do alimento "necessário" para viver.


Jesus dirige-se precisamente a esta realidade necessária ao homem, mas simples e humilde, para revelar algo de si e para significar o dom de si mesmo a nós. Jesus diz que Ele mesmo é pão, um pão para a vida, um pão vivo que não vem dos homens, que os homens não podem dar a eles próprios, mas vem do Céu, de Deus. Um pão para a vida eterna, que é comunhão com Deus, vida para sempre com Deus, participação definitiva no seu amor.

 

No quarto Evangelho este pão, chamado nos sinóticos de «Corpo», é indicado como «carne», que no sentido bíblico não é a substância física do corpo humano, mas é a totalidade do ser vivo, a inteira pessoa humana. Toda a vida de Jesus está portanto no pão que Ele nos dá através da sua existência gasta no amor, oferecida através da morte na cruz e ressuscitada pelo Pai no poder do Espírito Santo. É por isso que Jesus diz: «Eu sou o pão vivo, descido do Céu. Se alguém comer deste pão viverá eternamente e o pão que Eu darei é a minha carne, dada para que o mundo viva».

 

São palavras que devemos contemplar, não explicar, porque não conseguimos compreendê-las em plenitude. Se nós queremos viver da vida verdadeira e plena, não só da nossa vida biológica que vai em direção à morte, devemos comer o pão que Jesus nos oferece, Ele próprio. Toda a sua vida, toda a sua ação, todas as suas palavras, do nascimento em Belém até à morte de cruz, tudo está enxertado na vida do Filho para sempre e para sempre no seio do Pai, e por isso é vida eterna que nos é oferecida, se estamos à procura, famintos dessa vida.



Atenção: esta vida não é só vida divina, em vista de uma divinização, mas é também e antes de tudo a vida humana de Jesus, a vida por Ele vivida na carne frágil e mortal que tinha assumido ao nascer da Virgem Maria. Essa vida humana vivida neste mundo por amor de nós, humanos, vida de um homem que a gastou, consumou até à morte de cruz, é para nós alimento de vida para sempre.

 

Pois bem, creio que esta festa nos consente, melhor, nos pede que aprofundemos tal realidade decisiva para nós, crentes cristãos. Nós vamos para Deus através de Jesus, «a imagem do Deus invisível»: narrando Deus com a sua vida, Jesus julgou todas as imagens e os rostos de Deus que os seres humanos fabricam com as próprias mãos, julgou todas as projeções humanas que muitas vezes atribuem a Deus o rosto de um Deus "perverso". Doravante o que de Deus pode ser conhecido e pregado é o que foi vivido e pregado por Jesus. Ora, se é verdade que para a fé dos cristãos é decisivo aderir a Jesus, é preciso no entanto entender bem as palavras: quando se diz "Jesus", estamos a referir-nos a um verdadeiro homem, débil, frágil e mortal como nós; um homem de carne, a sua carne que Ele nos dá. Um homem que nasceu, viveu e morreu como cada filho de Adão: "humanissimus", como gostavam de o definir os padres monásticos medievais.

 

Se portanto há um Deus, para nós, cristãos, é o Deus que deve ser conhecido, lido e "visto" na existência humana de Jesus de Nazaré. Por este motivo o cristianismo exige que Jesus seja conhecido através da sua vida narrada e testemunhada nos Evangelhos por parte de quem esteve envolvido na sua vida, os discípulos, tornados «servos da Palavra»; só através deste conhecimento poderemos também crer nele até o amar, até o confessar «Messias», «Senhor», «Filho de Deus», «Salvador», e assim chegar à fé em Deus, ao conhecimento do Deus vivo e verdadeiro.


Se, ao contrário, não se conhece a humanidade de Jesus, acaba-se - repito-o - por acreditar nele como numa realidade por nós imaginada e construída. É absolutamente necessário olhar para a sua existência humana quotidiana, encontrar nela a própria vida de Deus, ler nela a expressão cumprida de Deus, e, consequentemente, colher também os elementos "extraordinários" da sua vida, como signos, sinais capazes de orientar a nossa fé.

 

É por isso a sua forma de vida - a sua carne e o seu sangue, para o dizer com a página evangélica deste dia - que é Evangelho, boa notícia para sempre e para todos, enquanto que se se aclama Jesus como Deus sem o confessar «vindo na carne», acaba-se por o desnaturar. Aqui está a singularidade do cristianismo: Deus revelou-se em Jesus, fez-se conhecer na sua humanidade; Deus fez-se homem e a incarnação é a humanização de Deus. Sim, Jesus viveu a sua existência terrena como homem pobre e frágil, exatamente como os homens e as mulheres com quem entrava em relação; o Filho entrou na história como homem, plenamente homem: um homem capaz de fazer da sua vida uma obra-prima de amor. E é este amor, nada mais do que este amor recíproco, vivido e praticado a partir do seu exemplo, que Ele nos deixou como «mandamento novo», último e definitivo, como prática que nos permite sermos reconhecidos como seus discípulos e discípulas. (...)


Também nós, como os ouvintes judeus, estamos pelo menos perturbados pelas palavras de Jesus "remeditadas" e reditas pelo quarto Evangelho: como é possível que um homem nos dê a sua carne como alimento? É uma loucura! E todavia Jesus não tem medo de escandalizar com uma afirmação tão forte; aliás, ao comentá-la, torna-a ainda mais escandalosa: «Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis em vós a vida». Linguagem dura - como dirão desde logo muitos dos seus discípulos - mas com a qual Jesus procura revelar-nos que comer o pão eucarístico e beber o cálice da bênção é receber a realidade misteriosa (isto é, no mistério, no sacramento) de Cristo, humanidade transfigurada na ressurreição e vida divina do Filho no seio do Pai. Assim, na Eucaristia a vida de Cristo torna-se nossa vida e nós tornamo-nos corpo de Cristo, seus membros vivos, pelo mesmo sopro que é o Espírito Santo. Este é o "pão" que não se corrompe e nos faz viver para a vida eterna.

 

Não devemos, contudo, esquecê-lo: tudo isto vivemo-lo sacramentalmente, tendo diante de nós pão partido e vinho para beber. Mas o nosso olho, se é habilitado pelo Espírito Santo, discerne nesse pão e nesse vinho o corpo e sangue de Cristo. Deles nos alimentamos e eles, entrados em nós, no metabolismo eucarístico - contrário ao biológico - fazem-nos tornar corpo do Senhor. Este é o grande mistério que nós adoramos antes de tudo: «A palavra fez-se carne» em Jesus; a carne de Jesus fez-se pão, nosso alimento; o pão nosso alimento, que é Jesus com toda a sua vida, morte e ressurreição, dá-nos a vida eterna.

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