Uma comunhão de amor

Liturgia 11 junho 2017  •  Tempo de Leitura: 10

É o domingo em que confessamos a Triunidade de Deus. Em verdade, a Triunidade de Deus é confessada pela Igreja sempre, em cada liturgia, mas, recentemente, sentiu-se a necessidade de instituir uma festa teológico-dogmática, que não é conhecida nem pela antiguidade cristã, nem, ainda, pela tradição cristã oriental. No entanto, é a ocasião de um louvor, de um agradecimento, de uma adoração do mistério do nosso Deus, comunhão de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo.

 

Alguém pode se surpreender que o texto evangélico escolhido pela Igreja para esta festa fala manifestamente apenas do Pai e do Filho, enquanto parece fazer silêncio sobre o Espírito Santo. Na realidade, o Espírito está presente como “amor de Deus” e como “companheiro inseparável do Filho” (Basílio de Cesareia), porque onde está escrito que “Deus amou tanto o mundo”, o cristão compreende que Deus amou o mundo com o seu amor, que é o Espírito Santo do Pai e do Filho.

 

Foi longo o caminho da revelação e, portanto, da adesão a ela por parte dos fiéis em relação à Triunidade de Deus. Gregório Nazianzeno reconhece isso com fineza: “O Antigo Testamento proclamava de modo claro o Pai, de modo mais obscuro o Filho; o Novo Testamento manifestou o Filho e fez entrever a divindade do Espírito; ora, o Espírito (…) concede-nos uma compreensão mais clara de si mesmo (...) Assim, através de ascensões, avanços, progressos de glória em glória, a luz da Triunidade brilhará com ainda mais clareza” (Discursos Teológicos 31, 26).

 

A Triunidade de Deus não é uma fórmula cristalizada, e não é preciso nomear sempre as três pessoas para evocá-la: Pai, Filho e Espírito Santo são termos que indicam uma vida de amor plural, comunitário, são uma comunhão que nós tentamos expressar com as nossas pobres palavras, sempre incapazes de dizer o mistério, de expressar a revelação do nosso Deus.

 

Não é por acaso que, muitas vezes, para dizer algumas palavras nossas sobre a Triunidade de Deus, depois de séculos, ainda recorremos à intuição de Agostinho, que vê no Pai o amante, no Filho o Amado, e no Espírito o Amor que intercorre entre os dois. E São Bernardo de Claraval, de sua parte, lia a Triunidade de Deus como um beijo “circular” e eterno: “O Pai dá o beijo, o Filho o recebe, e o próprio beijo é o Espírito Santo, aquele que está entre o Pai e o Filho, a paz inalterável, o amor indiviso, a unidade indissolúvel” (Sermões sobre o Cântico dos Cânticos 8, 2).

 

Mas nos detenhamos sobre o trecho evangélico. Estamos no contexto do colóquio noturno entre Jesus e Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21), um “mestre de Israel” (Jo 3, 10) que representa a sabedoria judaica em diálogo com Jesus. Este é um diálogo fatigante para Nicodemos, que tem fé em Jesus, mas se esforça para acolher a novidade da revelação trazida por esse rabi “que veio de Deus”. Jesus responde às perguntas do seu interlocutor, mas a última resposta, a mais longa, parece contida dentro de uma meditação do autor do quarto Evangelho.

 

Portanto, nos versos que hoje a Igreja nos oferece, é Jesus que fala ou se trata de uma meditação do evangelista? Em todo o caso, são palavras de Jesus certamente não relatadas tais e quais, mas meditadas, compreendidas e ditas novamente no tecido de uma comunidade cristã que tentou acreditar nelas e vivê-las.

 

Assim inicia o trecho: “Deus amou tanto o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer (...) tenha a vida eterna”. Pouco antes, está escrito: “É preciso que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crer tenha a vida eterna” (Jo 3, 14-15). Essas duas afirmações são paralelas e explicam-se mutuamente.

 

Para que cada ser humano possa crer, aderir ao Filho do Homem e pôr a sua confiança nele, é preciso que ele conheça o amor de Deus por toda a humanidade, por este mundo. Tal amor de Deus teve a sua epifania em um ato preciso, datável, localizável na história e na terra: no dia 7 de abril do ano 30 da nossa era, um homem, Jesus de Nazaré, nascido de Maria, mas Filho de Deus, foi levantado na cruz, onde morreu “tendo amado até o fim” (Jo 13, 1), e, naquele evento, todos puderam ver que Deus amou tanto o mundo a ponto de lhe entregar o seu único Filho, por ele “enviado ao mundo”.

 

Naquela hora da cruz, “a hora de Jesus”, mais do que nunca foi manifestada a glória de Jesus como glória daquele que amou até o fim, narrando (exeghésato: Jo 1, 18) o amor de Deus através da oferta da sua vida a todos, sem discriminações. Aquela foi a hora da elevação do Filho do Homem, ao qual todos os seres humanos, de todos os séculos e de todas as gerações, olham com ao “transpassado por amor” (cf. Zc 12, 10; Jo 19, 37; Ap 1, 7).

 

Eis o dom dos dons de Deus: dom gratuito, dom de si mesmo, dom irrevogável e sem arrependimento; dom nunca merecível, mas que deve ser acolhido com fé; dom feito apenas por um amor louco de Deus, que quis se tornar homem, carne frágil e mortal (cf. Jo 1, 14), para estar no meio de nós, conosco, e assim compartilhar a nossa vida, a nossa luta, a nossa sede de vida eterna.

 

Eis o que aconteceu com a vinda na carne do Filho de Deus e com a descida do Espírito sempre é o companheiro inseparável do Filho; eis o mistério do amor de Deus vivido em comunhão, comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aquele mundo (kósmos), que, às vezes, no quarto Evangelho, é lido sob o sinal do mal, do domínio de Satanás, “o príncipe deste mundo” (Jo 12, 31; 16, 11; cf. 14, 30), aqui é lido como humanidade, como universo que Deus viu como “coisa boa” (Gn 1, 4.10.12.18.21.25) e “muito boa” (Gn 1, 31), que ele amou até a loucura, até o dom de si mesmo, dom que lhe exigiu despojamento, pobreza, humilhação.

 

Ser salvo significa passar da morte à vida definitiva, e isso é possível para quem aceita o dom aderindo a Jesus Cristo, aquele que dá o Espírito da vida. Esse dom louco de Deus ao mundo não tem como objetivo o juízo do mundo, mas a sua salvação: Deus quer que a humanidade conheça a vida para sempre, a vida plena, que apenas ele pode lhe dar.

 

Mas, diante do dom, resta a liberdade humana. O dom é feito sem condições, portanto, pode ser acolhido ou rejeitado. Quem o acolhe, foge do juízo e vive a vida para sempre, mas quem não o acolhe, julga a si mesmo. Não é Deus quem julga ou condena, mas cada um, acolhendo ou rejeitando o amor, entra na vida ou se afasta da fonte da vida, percorrendo uma estrada mortal. Certamente, encontramos aqui expressões de Jesus muito duras, radicais, mas elss devem ser decodificadas e explicadas.

 

Se Jesus diz que “quem não crê já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho unigênito”, ele não diz isso manifestando uma condenação para as multidões de homens e mulheres que não puderam encontrá-lo na história, por serem pertencentes a outros tempos ou a outras culturas. Estes, se viveram a sua existência em conformidade com a existência humana de Jesus, marcada pelo amor aos irmãos e às irmãs, é como se tivessem participado, embora com todos os limites humanos, da vida humana de Jesus; e, assim, sem conhecê-lo, sem professar o seu Nome na fé cristã, conhecerão a vida eterna nele e com ele. Mas quem teve uma vida gravemente disforme à vida humana de Jesus e, até, em contradição com ela, não conhecendo o amor, este já está julgado e condenado: para ele, não há vida eterna.

 

A festa da Triunidade de Deus deveria não tanto nos induzir a especulações sobre esse mistério inefável, mas sim a fazer experiência da própria Triunidade na Igreja, que é a sua imagem, por ter nascido no coração do Pai, por ser fundada no Filho e por ser reunida pelo Espírito Santo. A Igreja é o lugar em que, dentro do possível para nós, humanos, nos é dado fazer experiência do coração de Deus e da sua comunhão plural.

 

Enzo Bianchi]

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

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