O TRÍPTICO DA ORAÇÃO

Liturgia 28 julho 2019  •  Tempo de Leitura: 16

1. Depois do tríptico sobre o discípulo de Jesus, que contemplámos nos últimos três Domingos (XIV, XV e XVI), em que foi proclamado, em três andamentos, o saboroso texto de Lucas 10 (o envio dos 72 discípulos; o bom samaritano; Maria que escolheu estar sentada a escutar a Palavra de Jesus), eis-nos já perante um novo belo tríptico, agora sobre a oração cristã, que não se distribui por vários Domingos, mas que entra todo por este Domingo XVII adentro, e que Lucas nos oferece em 11,1-13.

 

2. O primeiro quadro deste tríptico sobre a oração pode intitular-se INTIMIDADE, e tem a sua explicitação altíssima na oração do PAI NOSSO, ensinada por Jesus aos seus discípulos (Lucas 11,1-4). Jesus é o modelo de oração oferecido aos discípulos. Por isso, aparece ao fundo da cena a rezar sozinho ao Pai (Lucas 11,1), totalmente voltado para o seio do Pai (João 1,18), completamente ocupado nas Realidades do Pai (Lucas 2,49), repousando toda a sua existência no Pai. Os discípulos veem Jesus a rezar, mas não ousam interromper tão intensa corrente de confiança e de amor. Veem apenas. O deslumbramento tolhe-lhes os movimentos e as palavras. Mas eis que Jesus termina a sua oração ao Pai. Então, ainda extasiado, um dos discípulos, em nome de todos, também em nosso nome, atreveu-se a formular este pedido: «Senhor, ensina-nos a rezar como João Batista ensinou a rezar os seus discípulos!» (Lucas 11,1).

 

3. E foi então que Jesus ensinou a eles e a nós, a todos, o segredo mais profundo da sua vida e da nossa vida, a orientação da sua vida e da nossa vida: para onde, melhor, para quem, devem estar sempre voltados o nosso coração, os nossos olhos, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa vida toda.
E disse: «Quando rezardes, dizei:

 

“Pai (páter),
1. Santifica o teu Nome,
2. Venha o teu Reino,
3. Dá-nos o pão nosso (árton hêmôn) de cada dia,
4. Perdoa os nossos pecados,
5. Não nos deixes cair na tentação”» (Lucas 11,2-4).

 

4. Como bem se vê, não se trata de uma lição teórica, mas da comunicação de uma experiência, de um segredo, de um tesouro, de uma intimidade. Rezar é orientar a nossa vida toda para Deus, a quem tratamos carinhosamente por ’Abba’, nome de radical ternura, simplicidade, verdade, confidência e dependência, posto na boca de Jesus em Marcos 14,36, e na nossa em Romanos 8,15 e Gálatas 4,6. Sim, aqui não está em jogo a instituição paterna, o pai, ʼAb, que impõe respeito, autoridade e distância. Trata-se, antes, de ’Abba’, ’Ab-ba’ soletrado, que implica a duplicação das sílabas, que é uma característica da linguagem infantil, uma Lallwort de intolerável confiança! São as criancinhas que usam este tipo de linguagem. A tanto carinho e simplicidade nós somos chamados! A oração é composta no texto de Lucas por cinco pedidos (Mateus apresenta sete: Mateus 6,9-13), sendo o do meio o do «pão nosso», dado por Deus. A pergunta infantil, ou científica, ou de mera curiosidade, é sempre a mesma: «O que é isto?». A nossa resposta habitual é também sempre a mesma: «é pão». Impõe-se que nós, modernos, aprendamos e ensinemos novas notas, novas pautas, novos acordes. A resposta correta, aprendida na Escritura Santa, soa assim: «É o pão que Deus nos dá» (Êxodo 16,15).

 

5. De acordo com a retórica bíblica, o pedido do meio é o mais importante, pois é o que estrutura a inteira oração, constituindo por assim dizer a clave musical de toda a oração e relação com Deus-Pai. Não esqueçamos que o pedido do meio (o n.º 3) consiste em pedir o «Pão nosso». E aqui é preciso descer abaixo das escadarias da importância e do orgulho e das estratégias que diariamente usamos, pois é imperioso assumir a atitude evangélica das crianças, dado que só elas sabem pedir pão com verdade e simplicidade, sem maquilhagens, truques ou reboco de qualquer espécie! De resto, a nós, crescidos e importantes, basta sairmos à rua e tentarmos fazer o exercício de pedir pão, para vermos a triste figura que fazemos e percebermos logo que não temos mesmo jeito nenhum para isso. Sim, teremos então, evangelicamente, de aprender com as crianças!

 

6. Notemos ainda que este pedido n.º 3 não consiste apenas em pedir pão. Trata-se, na verdade, de pedir o «pão nosso». E aí está outra bomba a rebentar no nosso coração e na nossa mesa. É que o «pão nosso» não é o «pão meu». E isto quer dizer que o pão que está sobre a minha mesa, dado por Deus, não é «meu». É «nosso». Não é mais possível comer descansado, saciar-me, quando sei que há irmãos meus que passam fome. Aí está a dimensão social, horizontal, da oração, que é então um espantoso exercício de fraternidade.

 

7. O quarto pedido desta oração por Jesus rezada e vivida e a nós por Ele ensinada é sobre o perdão. Pedimos a Deus o perdão dos nossos «pecados» (hamartía) (Lucas 11,4a), para que, segundo o modelo de Deus, nós perdoemos as «dívidas» (opheílô) dos nossos irmãos (Lucas 11,4b). Na verdade, os gregos não conhecem a metáfora da «dívida» para indicar «pecado». São os hebreus que usam essa metáfora (veja-se Mateus 6,12, que usa sempre «dívidas»). Note-se, porém, a agudeza do pedido formulado por Lucas. Pedimos a Deus que nos perdoe os nossos pecados. Mas este modelo serve para nós aprendermos a perdoar ao nosso próximo também as suas dívidas concretas, não apenas as ofensas morais!

 

8. O segundo quadro deste tríptico sobre a oração trata o tema da CONSTÂNCIA da oração, retratada imediatamente a seguir (Lucas 11,5-8), na atitude do amigo que de noite bate à porta do seu amigo, e não desiste até ser atendido. Este quadro mostra que a oração cristã não é apenas emoção passageira, mas a respiração permanente da alma, que não se extingue perante as adversidades, nem sequer durante a noite!

 

9. O terceiro quadro deste tríptico trata o tema da EFICÁCIA da oração (Lucas 11,9-13): «Pedi e ser-vos-á dado, procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á». Entenda-se, todavia, que se trata de uma eficácia que não tem de responder diretamente aos cânones do que esperamos obter, aos desejos que formulamos, mas sim aos planos de Deus, que devemos saber acolher com humildade e prontidão. Como refere o poeta libanês Khalil Gibran (1883-1931), «Deus não escuta as nossas palavras, se não é Ele próprio a pronunciá-las com os nossos lábios».

 

10. Essencial é saber que dirigimos sempre a nossa oração ao Pai, que dá sempre o melhor aos seus filhos. E é grandemente significativo que o verbo REZAR, que aparece no tríptico três vezes (Lucas 11,1[2 x] e 2), apareça praticamente traduzido por PEDIR, que contamos no texto cinco vezes (Lucas 11,9.10.11.12.13), e cujo corolário é DAR, com nove menções no texto (Lucas 11,3.7.8[2 x].9.11.12.13[2 x].

 

11. Feita esta explicitação vocabular, salta à vista a importância dada à oração de súplica. Todos sabemos que a oração de súplica é muitas vezes vista como uma forma secundária de oração, quase como um subproduto, quando comparada com a oração de louvor ou de ação de graças. Ora, este tríptico diz-nos que, de acordo com Jesus, REZAR é PEDIR, é mesmo só PEDIR. Aprofundando um pouco, compreendemos então que PEDIR é próprio do filho. E é como Filho que Jesus REZA, e é, portanto, no lugar de filhos, e, por consequência, de irmãos, que Jesus nos quer colocar. Por isso também nos ensina a REZAR, dizendo: «Pai…». E também já sabemos que o Filho é aquele que recebe tudo do Pai, sendo o Pai aquele que dá tudo ao Filho.

 

12. Coloquemo-nos então no nosso lugar correto: o de filhos, que tudo recebem do Pai, e tudo partilham como irmãos. E compreendamos bem que, para recebermos tudo, não podemos possuir nada! Se possuirmos alguma coisa, já não podemos receber tudo! Impõe-se que temos de ser radicalmente pobres, filhos e irmãos! Só assim podemos começar a REZAR.

 

13. O contraponto musical de hoje vem do Livro do Génesis 18,20-32. Abraão é visto no papel do orante que negoceia com Deus a salvação de Sodoma. A sequência da intercessão de Abraão lembra o procedimento habitual nos mercados do Médio Oriente, em que o cliente faz sucessivas tentativas para baixar o preço do produto que pretende adquirir. Abraão faz seis tentativas: começa por propor 50 justos pela salvação de toda a cidade; passa depois para 45, depois para 40, depois para 30, depois para 20, finalmente 10. Vê-se que não havia nenhum, e a cidade, com todos os seus habitantes, é destruída (Génesis 19,24-25). Mas ficam desde aqui já em aberto duas coisas: a primeira é que, como referem os doutores do Talmude, não se pode deixar Deus sozinho, como fez Abraão, que se foi embora (Génesis 18,33); a segunda é que, para poder atender a oração de Abraão e a nossa, terá Deus de enviar ao nosso mundo um justo verdadeiro, «Jesus Cristo Justo» (1 João 2,1). É Ele, na verdade, o nosso Redentor e Salvador.

 

A cidade inteira
Cheira a enxofre e feno
E a todo o momento uma fogueira
Pode transformar esta lixeira
Num inferno.

Vem Abraão contando pelos dedos
Percorre a escala toda de cinquenta a dez,
Passando por quarenta e cinco,
Quarenta, trinta e vinte.
Ele quer salvar Sodoma a todo o custo
Mas não encontra nem sequer um justo
Para oferecer em troca dos seus medos.

Ao todo, seis lances,
Seis ofertas atiradas para o chão.
Fica, pois, com a sétima, a última, na mão
Sob registo.
E no dia em que for aberta
Ver-se-á que é divina a letra
E que o nome é Cristo.

 

14. A página de São Paulo aos Colossenses (2,12-14), hoje lida e escutada, é outra vez sublime e espantosa, e, talvez, original, pois este agrafo do nosso batismo com o mistério da morte e da ressurreição de Cristo pode constituir uma originalidade paulina (ver também Romanos 6,3-5). Fomos sepultados com Ele, com-sepultados (syntaphéntes: part. aor. pass. de syntháptô), no batismo, e com Ele ressuscitados, com-ressuscitados (synêgérthête: aor. pass. de synegeírô), e com Ele vivificados, com-vivificados (synezôopoíêsen: aor. de synzôopoiéô), linguagem fortíssima que enxerta a nossa vida na vida de Cristo. O título da dívida (cheirógraphon), o contrato escrito e assinado pelo credor e pelo devedor, nós não o podíamos cumprir; foi suprimido pelo credor, que o cravou na Cruz. Mais uma vez é verificável, e Paulo mostra-o até à exaustão, que a Cruz de Cristo constitui o chão e o critério da identidade cristã e apostólica.

 

15. O Salmo 138, que hoje cantamos, é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

 

Bendito o dia em que outra vez rezamos,
E outra vez sempre de novo.
Rezar é voltar sempre ao princípio,
E recitar com mais amor cada uma das tuas maravilhas.

Assim,
Talvez a oração não tenha fim,
Porque é uma viagem dentro de mim,
Fora de mim,
Enunciando nomes, dores, alegrias, guerras, fomes,
Calcorreando montanhas, vales, avenidas,
Colhendo frutos no coração das árvores,
Partilhá-los com os passarinhos
Na toalha multicolor que estendeste sobre este chão dourado.

Rezar é saber bem
Que as coisas belas que vemos neste mundo são todas tuas,
E a mais ninguém pertencem.
E quem agora as tem na mão deve acariciá-las,
Partilhá-las,
Porque as tem apenas emprestadas.

Obrigado, Senhor,
Pelo céu e pelo chão,
Pelo vinho e pelo pão,
E por cada irmão que me deste.

O Bispo D. António Couto publica os artigos no blogue Mesa de Palavras

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