Mistérios da nossa ascensão

Liturgia 1 junho 2019  •  Tempo de Leitura: 3

A julgar pela figura minúscula que surgia no fundo da rua, dir-se-ia que não tinha mais de dez anos. Caminhava em ziguezague. Tocava numa árvore, espreitava o lixo, subia a um banco de jardim e detinha-se sempre em frente das montras com produtos novos. De repente, avançava em passos rápidos para recuperar o tempo perdido. Atirava pontapés ao ar, como se estivesse a jogar num grande estádio de futebol, e por vezes levantava os braços em sinal de vitória, enquanto imitava a multidão, «gooollll». Pouco depois, entoava desafinadamente: «Pai natal, pai natal, dá-me uma boneca...». O sol sem filtros incidia sobre o mar branco da calçada destacando, como pequenas ilhas, as sombras das laranjeiras. «Não faz mal, não faz mal…»

 

As pessoas olhavam-no com desconfiança. Inquietas, procuravam a referência do adulto que, metros mais à frente, de cabelos lisos, negros e estendidos até à saia comprida, caminhava curvada com o peso de uma outra criança que, espantada, mordiscava uma bolacha. Também ela ziguezagueava na rua, nesse tempo invulgarmente quente. Abeirava-se de algum transeunte desprevenido e, de rosto contorcido em súbita devoção, estendia-lhe a mão enquanto repetia a antiga jaculatória: «uma esmola, pelo amor de Deus». Eles evitavam-na. Eu evitei-a. Incomodado, justifiquei-me que não tinha nada para dar. Deixei-a naquele impiedoso deserto.

 

Só mais tarde a reconheci quando, em ambiente celebrativo, convidava a comunidade à oração com a tradicional prece: «Orai irmãos para que o meu e o vosso sacrifício seja aceite por Deus Pai…». O substantivo «irmãos», nesse dia, foi muito mal pronunciado. E no domingo em que celebramos a ascensão de Jesus, assinalando-a como prelúdio da nossa, a imagem destes irmãos ressurge como uma evidente reivindicação. Toda a humanidade, todo o género humano, em Cristo, subirá aos céus. Como irmãos, numa só voz, cantaremos as canções de todas as estações. E bendiremos Aquele que tem o encanto de nos atrair ininterruptamente.

 

Hoje, porém, a memória da canção natalícia cantarolada ao sol de forma tão atabalhoada, «fora de tempo», continua a ser uma interpelação. Há tantos sonhos que se acumulam à espera de um dia de natal. E os sonhos das crianças são eternos. Com uma linguagem angelical, eles despertam-nos do sono da indiferença, lembrando-nos que os pobres não vão ficar atrás, mesmo que o mundo persista em colocá-los no fim da fila. Eles não vão ocupar os últimos lugares. Pelo contrário, ultrapassar-nos-ão no regresso a casa, porque tornaram-se leves e especializaram-se na arte de bater às portas. Talvez até sejam os nossos mestres, aqueles que nos ajudam a contemplar o mistério da glorificação de Jesus, ao mesmo tempo que traçam a rota da nossa ascensão.

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