Por quem somos habitados?

Liturgia 24 maio 2019  •  Tempo de Leitura: 2

Batem-nos à porta, todos os dias, dezenas de pedintes que, de mansinho, contam histórias comoventes enquanto se instalam cabisbaixos em qualquer recanto da casa. Mas quando são contrariados, mostram-se altivos príncipes, senhores de muitas terras, que ameaçam pôr-nos fora da nossa própria casa. Outra vezes, até pela porta traseira, somos interpelados pelas gargalhadas de algum ilusionista habilidoso. Invadem o espaço até ao centro. Sentam-se como quem preside e derretem o nosso tempo com promessas encantadoras, embrulhadas em discursos malabaristas. A certa altura compreendemos claramente que estamos a ser enganados. Duvidamos um pouco na forma como devemos proceder. Por vezes, no entanto, acostumamo-nos à sua presença, mesmo que seja incómoda e miserável. Preferimo-la ao vazio. Temos pavor de não sermos habitados. Uma casa não habitada é um espaço condenado, um corpo sem vida.

 

De tempos a tempos, confesso-vos, revejo quem me habita. Por vezes chego a ter conversas duras. Pergunto-lhe como é que entrou, quem é, e o que pretende fazer. Já exigi a um intruso que saísse. Comer com ele era deixar-me beijar, todos os dias, por Judas. E prometi não voltar a abrir-lhe a porta. A promessa renova-se diariamente porque o intruso aparece travestido de mil formas.

 

Há um divino peregrino que todos os dias pede hospedagem em nossa casa. É necessário acolhê-lo. E sobre a mesa estender a toalha branca. Trazer a louça guardada para os dias de festa e servir-lhe a melhor refeição. Celebrar a amizade. Deixar que Ele nos segure a mão. Demoradamente. E confiar-lhes os segredos antigos.

 

Ser habitado por Deus. Se em mim se pode cumprir a promessa feita na última ceia, porquê esta tendência para protelar a entrada de tão grande hóspede? Assumir, como missão, ser a morada de Deus neste tempo. Não abdicar das condições para que divina presença seja possível, como a jovem judia que, às portas de Auschwitz, escrevia mansamente, no caderno diário: «ser morada de Deus até às últimas». E lamentava que algumas pessoas, «no último momento», pusessem a salvo «aspiradores a salvo e garfos e colheres de prata em vez de ti, meu Deus». Traçar, como ela, um programa para a sua toda a vida: «…acredita que continuarei a trabalhar para ti e a ser-te fiel e não te expulsarei do meu território». (Etty Hillesum, Diário, 12 de Julho de 1942).

 

Por quem somos habitados?

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