A nossa mãe

Liturgia 11 maio 2019  •  Tempo de Leitura: 4

A imagem sobreveio de novo quando reencontrei a expressão «Igreja como mãe» utilizada, mais uma vez, pelo papa Francisco, na última mensagem para o dia mundial das vocações. «Uma mãe», disse o sumo pontífice, «devemos amá-la, mesmo quando vislumbramos no seu rosto as rugas da fragilidade e do pecado».

 

A metáfora eloquente, carregada de esperança, é confrontada, no entanto, com os dados da realidade. A avaliar pela prática da maioria dos fiéis, podemos dizer que a relação entre os filhos pelo batismo, e a mãe, aquela que os gerou na fé e os alimentou através dos sacramentos, é marcadamente esporádica e justificada por razões de ordem pragmática – «vou agora por que tem de ser…». Não é, portanto, uma relação motivada por amor filial. O que move os filhos, não é o desejo de estar com a progenitora e de a ajudar, criando sinergias com outros irmãos, em tempo de maior fragilidade, mas a necessidade inadiável de resolver alguma situação ou, simplesmente, o antigo costume. A relação destes filhos com a mãe é semelhante à daqueles que a “arrumam” num canto da cidade e desenvolvem engenhosos raciocínios para atenuar o sentimento de culpa, para justificar a falta de proximidade, de presença, junto daquela que foi a origem da vida. São uns eternos filhos pródigos de uma desamparada mãe. E a imagem da Sra. Francisca renasce como que a reclamar justiça.

 

Afundada num sofá, com a venerável cabeça inclinada sobre o peito, diante de uma TV que não se calava, a Sra. Francisca ouvia mal, falhava-lhe a memória, caminhava com dificuldade e comia com a ajuda de terceiros. Sempre que alguém se aproximava e lhe dirigia algumas palavras, pegando-lhe na mão, a pesada cabeça levantava-se lentamente sobre os ombros ossudos, e, como um busto de mármore, qual imagem grega, oferecia um sorriso cândido e prolongado. «Está-lhe gravado no cérebro», comentava a vizinha.

 

Durante anos de carreira profissional, a antiga funcionária dos correios habituara-se a levantar os olhos da selva de papéis para acolher, com um sorriso automático, os clientes nas suas diversas preocupações. «Faça assim…», «preencha ali…», «vá por ali…», «não se esqueça de…». Sorria a toda a hora. Os dias de trabalho remunerado esgotaram-se. Depois, avançada na reforma, cada vez mais dependente, já sem marido e longe dos filhos, penou à espera de um lugar naquela casa. Permaneceu dia após dia, a dois metros da sempre viva TV, naquela sala onde a poeira do tempo parecia estar condenada a poisar definitivamente. Ela foi mãe? Alguém sabe dos seus parentes? Alguém se disponibilizava para registar a sua história num período tão importante da evolução desta cidade? As crianças que aprendem a ler saberão dela?

 

No fundo da rua, a torre de uma igreja assinalava o espaço religioso. «Foi ali que um dia me casei. E batizei-os…».  E não disse mais nada. A imagem dela, numa casa de repouso, à espera do repouso definitivo, quase sozinha, é a imagem que se pode colar à da Igreja no Ocidente, segundo as previsões mais pessimistas de alguns profetas apocalípticos. Onde estão os teus filhos?

 

Este dia de oração pelas vocações, domingo próximo, lembra-nos que a qualidade da maternidade da Igreja depende, e muito, da proximidade de cada filho.

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