Dualismos

Liturgia 5 janeiro 2019  •  Tempo de Leitura: 3

Andava de um modo estranho e hesitava constantemente. Algumas pessoas reconheciam nela a fortaleza dos grandes, a heroicidade dos fundadores da cidade, a intuição dos génios. Outros julgavam-na apenas como uma sobrevivente capaz de se adaptar nas mais diversas circunstâncias. Poucos, no entanto, acreditariam se ela lhes dissesse, como mais tarde disse antes de partir, que a esperança e o medo persistiam lado a lado, como amantes inseparáveis, no momento das grandes decisões e, sobretudo, na hora de as aplicar. «Algumas vezes o medo envolve a esperança com um manto sufocador, outras vezes», hesitava, «era a esperança que amansava o medo e, apesar das persistentes súplicas, com o adamastor amordaçado, a nau da esperança avançava levada pelos ventos da liberdade».

 

Por essa altura subiu pela primeira vez ao púlpito da igreja um certo pregador itinerante. A novidade despertou a atenção da assembleia que ouviu cheia de curiosidade o jovem orador. Dissertava, com paixão, sobre a arte do discernimento para alcançar os bens eternos. Estimulados por tão sã sabedoria, os fiéis começaram os tais exercícios. Como quem pesa o ouro, pesaram o bem em gramas de atos os quais, uma vez acumulados, faziam do proprietário uma pessoa de bem. Era preciso muito boas ações, renúncias e sacrifícios, para chegar a essa categoria, mas não faltavam candidatos que competiam entre si.

 

Houve, no entanto, quem pusesse em causa o entusiasmo geral ao interrogar se a balança usada para pesar tais ações estava devidamente calibrada, se a riqueza acumulada estaria sujeita ao imposto vigente, se alguns desses bens podiam ser vendidos a terceiros, se as regras de transmissão de bens se aplicavam nestes casos, etc.

 

O debate prolongou-se pela noite dentro tendo sido impossível chegar a um consenso sobre matérias como a acumulação de bens, regras sucessórias, direitos adquiridos, etc. Passaram dias, sucederam-se semanas, meses, e o ambiente de crispação parecia reacender-seem cada esquina. Sempre que alguém se encontrava ocasionalmente, na praça, no jardim ou simplesmente enquanto esperavam o transporte público, o tema era de novo retomado. A aldeia nunca tinha estado tão dividida. Só mais tarde se tornou evidente que o bem como meta individual pode ser fonte de mal coletivo.

 

Algum tempo antes, ela lembrou, com a acostumada hesitação, que o mal estimula o bem e, por vezes, vezes demais, «o bem desperta tristemente o mal como a inveja de Herodes». «Mas no coração do mal é possível encontrar o bem» e acrescentou, receosa, «um bem mal discernido é um mal disfarçado. Bem e mal coexistem como amantes. Bem e mal são duas mulheres fecundas à procura de marido».

 

Pôs-se a caminho. Receosa e com esperança. Ainda hoje procura o bem.

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