Ao espelho

Liturgia 3 novembro 2018  •  Tempo de Leitura: 3

«Facebook, meu querido Facebook, há alguém mais amada do que eu?», assim podia começar a história. A pergunta repetia-se logo ao despertar, pela manhã, a meio da manhã, enquanto tomava um chá para emagrecer, ao almoço e pouco depois, na sesta, durante o intervalo do lanche, quando comia lentamente umas bolachas integrais sem açúcar, ao anoitecer e, em certos dias, pela noite dentro. «Querido Facebook, diz-me a verdade, há alguém com mais qualidades do que eu?»

 

Um dia, estava tão concentrada a consultar as respostas dos fãs e a apreciar a concorrência, que perdeu o pé e deslizou para o oceano das imagens que avançavam rapidamente e cujas temáticas se intercalavam, sem qualquer conexão, entre figuras humanas idealizadas e animais muito engraçados, produtos para uma limpeza eficaz da pele e receitas para a felicidade em poucos passos. Teve ainda tempo de soltar um grito enquanto levava as mãos à cabeça – duvidou se seria a sua cabeça –, mas foi rapidamente engolida pela corrente de fragmentos de informação e imagens multiformes.

 

A energia afetiva que nos obriga a sair de nós mesmos para procurar o rosto de Deus e para nos relacionarmos com os outros pode, de facto, sofrer diversas vicissitudes, como, por exemplo, ser-se sugado pelas necessidades de um ego carente e eternamente insatisfeito. A dependência do espelho das redes sociais, que, como é sabido, distorce a realidade, para se alimentar narcisicamente, é sintoma de uma grave perturbação: a pessoa não está disponível para estabelecer uma reação sólida e madura com terceiros através da via poderosa do amor. Vive angustiada com as possíveis virtudes que a tornam merecedora do amor dos outros, precisa de um constante “like” para estar em paz.

 

No coração do universo religioso de matriz cristã está o mandamento do amor desdobrado numa dupla direção – amor a Deus e ao próximo. É em torno deste eixo fundamental que se configura a identidade do discípulo cujo Mestre é um modelo perfeito de docilidade amorosa para com Deus e, simultaneamente, de entrega e serviço incondicional à humanidade, em especial a que se encontra ferida e desencaminhada. Neste sentido, a experiência espiritual profunda é transformadora, liberta-nos da escravatura de um ego sedento, rompe com o seu ciclo vicioso na medida em que estimula o crente a aproximar-se de Deus, fonte de amor para com os outros.

 

Tendo Deus como a grande paixão, opera-se em nós uma descentração egotista que nos dispõe afetivamente para amar e servir os outros.

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