Santos e Populares

Liturgia 23 junho 2018  •  Tempo de Leitura: 3

A cidade veste-se de festa para celebrar a solenidade do Santo Padroeiro, o nosso S. António (aqui é mesmo de Lisboa), o mais universal de todos os santos. Nas praças e recantos da capital, sobretudo na zona antiga, ouvem-se as velhas canções, com ritmos apressados, a convidar os habitantes a um pé de dança e, no ar, o aroma das sardinhas e das febras sobre a grelha estimulam o apetite do turista. O ambiente é de celebração. Muito antes do futebol congregar a população, já os «Santos» davam que falar. Estes Santos tornaram-se, de facto, muito populares!


Para quem vem de fora, no entanto, é impossível não ficar perplexo com a associação entre o santo e o popular quando, neste universo, de santidade quase nada consta e de popular tem tudo.


Lembro-me de participar, pela primeira vez, nas noites de S. João no Porto, de percorrer as ruas da Invicta com um martelo na mão e distribuir indiscriminadamente marteladas, e de me sujeitar a levá-las num jogo viciante, do manjerico e do alho-porro, da imperial abundante e dos muitos impropérios em ambiente informal. Tudo muito popular!


Gosto em geral da dimensão festiva. Aprecio a expressão alegre e “profana” do acontecimento religioso. Reconheço as vantagens não só da dimensão lúdica, mas também catártica que uma experiência espiritual proporciona e, por isso, acho natural as diversas manifestações como a dança, o canto, etc.


A minha questão reside apenas na absolutização do qualificativo «popular» em detrimento do substantivo «santo». Dito de outro modo, como é que o sapiente S. António, doutor da Igreja, homem que sabia de memória a Sagrada Escritura, que combateu os falsos profetas do seu tempo (era conhecido como «martelo dos hereges»), se tenha tornado um santinho popularucho, uma espécie de amuleto protetor ao qual recorrem até alguns católicos devotos? Como é que o austero S. João Batista (se ele soubesse…), o purificador do povo, ficou reduzido às sardinhas e à sangria, aos balões e a música pimba? Onde está a vertente do homem de Deus, o profeta, o visionário, o servo dos pobres que todos nós, batizados, somos chamados a imitar? Porque é que esta popularidade silenciou a voz da santidade? Na verdade, tendo estes dois modelos por referência, não faltariam na igreja quem denunciasse, por exemplo, as armadilhas de uma “espiritualidade pop” (tão propensa à satisfação narcisista, mas tão desligada do amor ao próximo), nem as políticas marcadamente xenófobas e desumanas ou o relativismo moral com as suas propostas de falsa compaixão.


No princípio não era assim. Os santos como João batista e António de Lisboa tornaram-se um modelo inspirador para todo povo cristão. Contemplando-os, cada batizado sentia ânsias de seguir os seus passos. Estavam revestidos de Cristo ou, para usar a linguagem apocalíptica, trajavam as «brancas túnicas», purificadas na tribulação, pelo sangue do Cordeiro. Eles eram a bandeira de um povo, motivo de alegria e de festa.


Santos que se tornaram populares, mas uma popularidade que nunca deveria anular a santidade.

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