A semente e a terra

Liturgia 16 junho 2018  •  Tempo de Leitura: 4

«A terra não presta», disse-me outra vez. «Já foram feitas várias tentativas. Estamos a perder…». Enquanto ouvia o discurso lamuriento do generoso colaborador, sobreveio à memória a imagem do agricultor madeirense, sujeito intrépido, mistura de engenheiro agrícola e de alpinista profissional, que se aventura nas encostas íngremes da ilha, por vezes desafiando abismos assustadores, para semear e colher, em ciclos ininterruptos, o possível para a subsistência, muito abaixo do suficiente. As áreas exíguas, normalmente construídas por muros de pedra basáltica, formam pequenos socalcos de terra fértil, com inclinação elevada e vista para o mar. O cenário não podia ser mais diferente daquele que havia de conhecer mais tarde, o da terra estendida como um tapete plano até ao infinito, a produção em larga escala, a monocultura aliada à tecnologia, «os desertos verdes» e o prolongado silêncio dos terrenos depois da sementeira. A alegria em tempo de boa colheita era uma nota comum em ambos os lugares.

 

Só semeia bem aquele que sonha, aquele que acredita, aquele cujas mãos estão cheias de esperança, o que vê mais longe, o místico.

 

«Compreendo perfeitamente», respondi, «mas vamos tentar outra vez, em menor escala. Vamos estar mais atentos aos sinais…».

 

Repetir o discurso “cheio de realismo” sobre a qualidade da terra pode ser uma justificação que denuncia a incapacidade do semeador em lidar com a frustração. «Se o quotidiano lhe parecer pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas. Para o criador nada é pobre, não há sítios pobres, indiferentes», escreveu Rainer M. Rilke ao jovem poeta. Também para o semeador da Palavra não há sítios pobres, nem indiferentes. A estratégia, essa sim, pode ser pobre. A criatividade nula. O entusiasmo deficitário.

 

Em matéria de evangelização, se olharmos para a realidade como terra que não presta, arriscamo-nos a agir como moínhos de vento, isto é, consumirmos passivamente o tempo à espera das condições externas que julgamos ser as mais favoráveis. Quais são essas condições? O cristianismo especializou-se e cresceu sobretudo em contextos desfavoráveis. A divina semente deu sempre bons frutos em terrenos com vista para o infinito, em que o agricultor foi um protagonista livre e sonhador.

 

Hoje assiste-se, nos contextos urbanos, a uma feliz proliferação de pequenas hortas, mesmo em lugares improváveis, como no topo de um prédio, junto aos telhados, numa varanda, num recanto junto à estrada. Há um desejo de não ser apenas um consumidor, mas também produtor, ainda que em pequena escala, do que há-de ser partilhado com outros. Há uma espécie de saudades da terra por parte da população maioritariamente urbana que, aos fins de semana, se descoloca para as aldeias.

 

Hoje, igualmente, assiste-se a um ressurgimento de novas sementeiras nas comunidades cristãs outrora repletas de fiéis. Pequenas hortas espirituais, lugares de ensaio, de partilha, de celebração e de procura de autenticidade. Surgem até em lugares improváveis. São sinais da Palavra fecunda. Sinais do Reino de Deus que persiste entre nós.

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