A garantia do amor

Liturgia 17 março 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Aproximava-se a hora. Em breve havia de estender os braços numa cruz. A entrega definitiva, «como o grão de trigo…».  O amor puro é assim mesmo. Aceita a morte como parte de um processo para que outros tenham vida. Sabe que há um tempo para tudo. Há também o tempo para olhar a morte de frente, abraça-la, chamar-lhe ternamente, como S. Francisco, «a minha irmã morte». E deixar-se abraçar por ela.

 

O mundo não compreende. «É conversa de gente louca», dizem-me, porque o mundo dos homens que lutam pelo êxito, onde há vencedores e vencidos, multiplicou os postos de venda da eterna juventude. Os sinais de decadência – os doentes, os idosos, os moribundos – estão isolados em pequenas ilhas, fora do mundo para não o contaminar, como se estivessem permanentemente com um pé na soleira da porta da morte. Já não produzem nem têm êxito. Não devem inquietar o mundo que se quer sempre jovem e belo, inteligente e rico. «Impossible is nothing» garante o cartaz publicitário a escassos metros de um grande muro que esconde um cemitério.

 

Há, no entanto, uma força própria dos fracos como há também uma vitalidade serena própria dos moribundos. É desconhecida pelos triunfadores. Soube, por exemplo, no outro dia, que uma mãe, doente terminal, acamada, procurou a mão forte do filho que chorava inconsolado com a sua eminente partida. «Aquela mão, mínima e fraca, sr. Padre, foi ela que me confortou e me segurou naquele momento» disse o filho enquanto gesticulava com a mão grande, «não fui eu que a confortei, não…».

 

Tinha sido uma experiência transformadora. Ele, um homem de sucesso empresarial, desconhecia o poder do amor puro. Até ao último suspiro, ela não deixara de ser a mãe, a grande mãe, a eterna mãe. Talvez o filho não tivesse compreendido que também ela era segurada por uma outra mão, aquela que a alimentara durante a vida, a fizera superar os diversos obstáculos de uma história atribulada, a mão que lhe tinha enxugado as lágrimas diversas vezes e agora guiava-a na passagem para a Vida Eterna. Ela estava agradecida e em paz. Ele assustado e revoltado. Não compreendia.

 

A hora de Jesus, a hora dos que eu amo e a minha hora. Quando ela chegar a quem darei a mão? A teóloga protestante Dorothee Sölle, num luminoso ensaio intitulado «A mística da morte», lembra que no mês de Novembro a tradição cristã aproxima-nos do cemitério. «[Esses dias] fazem-me tomar consciência de que eu não dei a vida a mim mesma (…). Eles ensinam-me algo que eu não me quero esquecer: dizem-me que eu também vou morrer».

 

A Páscoa que em breve vamos celebrar recorda esse mistério. Como diz o epitáfio de uma antiga lápide: «Eu estive como tu estás – vivo. Tu estarás como eu estou – morto». A Páscoa acrescenta, no entanto, que eu não serei refém da natureza. A morte é também um nascimento. Aquele que morreu como um grão de trigo deu-nos essa garantia.

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail