Confluências: o desejo de Deus é tão natural no homem

Liturgia 10 março 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Cá entre nós: o desejo de Deus é tão natural no homem que a sua negação reiterada pode ser motivo para adoecer. Conheci uma senhora muito rica que se encontra gravemente doente porque os seus pensamentos e desejos estão fechados, como se permanecessem numa garrafa selada quando, em bom rigor, gostariam de se entrelaçar com os pensamentos e desejos de Deus. «Alguém me ajude, por favor! Alguém que retire o selo desta garrafa e me ponha em contacto com o autor da vida», ouvia-a aos gritos, numa praça de Lisboa, na passada segunda-feira.

 

Se é verdade que «Deus amou de tal modo o mundo» ao ponto de se humanizar, isto é, de se tornar acessível a todos, sendo uma incontornável referência capaz de moldar uma cultura e de oferecer sentidos às aspirações mais profundas do coração humano, então porquê a sua rejeição? Quais as motivações? A verdade é que Ele nos configurou com um software que diariamente precisa de atualizações. E o homem, na sua boa vontade mal orientada opta, por vezes, pela versão pirateada de um programa que foi traçado desde a eternidade. Depois surge a insatisfação como um mal-estar crónico que não pode ser apressadamente rotulada de maleita para a moderna farmacologia. Digamos que essa insatisfação se assemelha a uma bateria que nos põe em movimento à procura de Deus, aqui e ali. Devidamente bem orientado, o homem pode semear e construir, ao invés de fragmentar e matar, desrespeitando os direitos do Autor.

 

Sim, o universo religioso, com os seus princípios normativos, oferece-nos a possibilidade de uma adequada realização dos desejos, essa carga de energia que nos foi fornecida pelo Criador. Digamos que a experiência religiosa oferece o mapa. Dota o ser humano do equipamento apropriado através do qual pode atravessar os percursos áridos, os desfiladeiros mais íngremes e as veredas mais sinuosas deste mundo. Estimula-o a prosseguir até alcançar a meta. É isto: a sabedoria espiritual, transmitida de geração em geração, proporciona ao crente o universo de sentidos capaz de sustentar a esperança, mesmo nos contextos mais adversos. E quando a leitura da fé esbarra na inexplicabilidade do mistério, ele sabe que a pergunta fica provisoriamente suspensa até ao dia em que «verá face a face». Digamos, por fim, que este universo religioso judaico-cristão foi e é o colo cultural no qual nascemos e nos sustentamos – porquê rejeitá-lo?

 

O desejo de Deus – de tal modo Ele ama o mundo – e o desejo do homem – de tal modo o homem procura Deus – confluem num tempo e lugar. Assim, os desejos da eternidade estão materializados culturalmente porque a cultura é a concretização de um sonho divino através do homem. Mas ela é uma obra inacabada, como lembra Eduardo Lourenço: «A cultura implica a continuidade dum esforço espiritual que se supera aprofundando-se». Cá entre nós: para rejeitar Deus e a sua proposta de «vida eterna» seria preciso «estar bem com o príncipe deste mundo», como escreveu Sophia no “Retrato de Mónica”, e desencadear uma luta feroz, diária e consistente, contra a cultura. Há quem o faça. Eu não aconselho.

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