Os Eleitos

Liturgia 3 março 2018  •  Tempo de Leitura: 3

O tempo quaresmal está fortemente associado à entrada dos catecúmenos na Igreja. Nos primeiros séculos os adultos que desejavam ingressar na comunidade dos seguidores de Jesus recebiam dos mais velhos os ensinamentos. A catequese estava fundamentalmente centrada no anúncio do crucificado apresentado como «escândalo para os judeus e loucura para os gentios». Ao mesmo tempo, os candidatos eram interpelados a dar provas concretas da adesão à nova fé durante todo o percurso formativo.


Na quaresma, os batizados reunidos em assembleia davam um parecer sobre a idoneidade de cada um. Eram «eleitos» apenas aqueles que tinham sido «fiéis à escuta da Palavra de Deus», os que «praticavam boas obras», «participavam na comunhão fraterna» e «eram assíduos à oração». Mesmo com um crivo apertado, a pequena comunidade crescia de uma forma significativa. Nela transparecia a beleza, a força e a sabedoria da mensagem do Mestre. Ela exercia um fascínio irresistível que motivava conversões.


Entretanto, nos séculos posteriores, com a “oficialização do cristianismo” e, sobretudo, quando a Igreja se torna uma espécie de “departamento” de alguns Estados, o batismo foi administrado massivamente a crentes e a não crentes. Tornou-se um hábito ser cristão sem conhecer Cristo. Chegou-se ao que o teólogo protestante assassinado pelos nazis, D. Bonhoeffer, apelidava de domínio da «graça barata». Muitos fiéis cresceram inseridos numa matriz cristã, batizados e confirmados, mas sem optarem claramente por Jesus. Limitavam-se apenas a repetir alguns elementos de uma tradição que se complexificava com o passar dos séculos, integrando costumes locais que, em certos casos, estavam pouco conformes aos ensinamentos do divino Mestre. Em certos períodos da história, sob o pretexto religioso, os zelosos homens da Igreja engendraram estratégias, fomentaram políticas e defenderam princípios que hoje merecem a nossa condenação.


A comunidade dos crentes como estrutura humana, santa e pecadora, fez e continua a fazer a sua evolução. Ela é uma realidade dinâmica que não pode cair na tentação de se cristalizar sob o pretexto de já ser perfeita. Assumir o humilde papel de um catecúmeno que necessita constantemente de «escutar e refletir sobre a Palavra de Deus» e, em espírito de fraternidade, «ser assíduo à oração», pode ser um objetivo para este tempo. Só assim encontraremos as respostas certas para os novos desafios que o mundo nos coloca. Se perdermos a capacidade de “repensar” e “reorar” a vida, facilmente nos tornamos máquinas repetidoras de rituais, exigentes com as quantidades, mas pouco empenhados em avaliar a direção do caminho que trilhamos.


Quando leio o Evangelho deste domingo, imagino o ímpeto destruidor do Mestre que derruba o que foi falsamente colado à Sua Igreja. Por vezes, parece que sinto o zunir do Seu chicote perto de mim.

(adaptado de 2015)

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