Escutai o Filho amado!

Liturgia 25 fevereiro 2018  •  Tempo de Leitura: 11

O Segundo Domingo da Quaresma é tradicionalmente o domingo da transfiguração de Jesus, ou seja, o polo oposto ao primeiro domingo, dedicado às tentações de Jesus. Neste ano, lemos o relato presente no Evangelho segundo Marcos e tentamos evidenciar as particularidades dessa narração em relação à dos outros sinóticos.

 

Começamos contextualizando o relato desse evento, que é colocado durante o ministério de Jesus, após a reviravolta da confissão de Pedro sobre a identidade messiânica desse rabino e profeta que anunciava a vinda do reino de Deus (cf. Mc 8, 29).

 

Marcos enfatiza que, depois dessa declaração, sobre a qual Jesus impôs a obrigação do silêncio (cf. Mc 8, 30), ele começou (érxato) a ensinar com parrhesía (cf. Mc 8, 32) que o Filho do Homem devia sofrer muitas coisas, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes, pelos escribas, em seguida ser morto e, depois de três dias, ressuscitar (cf. Mc 8, 31).

 

Esse ensinamento é seguido por uma promessa solene: “Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui não experimentarão a morte sem ter visto o reino de Deus chegar com poder” (Mc 9, 1). Palavras enigmáticas, que certamente diziam respeito aos discípulos que ouviam Jesus, mas também dizem respeito a nós que, hoje, lemos o Evangelho.

 

Portanto, confissão de Pedro, profecia de Jesus sobre sua paixão, morte e ressurreição, e promessa da visão do reino de Deus são aquilo que precede em seis dias o evento da transfiguração. No dia da criação do homem (cf. Gn 1, 26-31), o homem Jesus é revelado pelo Pai como o Filho amado, aquele a quem deve se dirigir a escuta.

 

Por isso, Marcos assinala: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte sobre uma alta montanha”. Jesus toma e leva para o alto, com soberana e livre iniciativa, os três discípulos mais próximos dele, que fazem parte do grupo dos Doze, mas separados dos outros em algumas ocasiões, para serem testemunhas privilegiadas de experiências únicas: a ressurreição da filha de Jairo(cf. Mc 5, 37-43), a transfiguração e depois a des-figuração, a agonia no Getsêmani (cf. Mc 14, 32-42). Três situações vividas por Jesus “à parte”, em uma solidão compartilhada apenas com os três escolhidos para entrar na sua intimidade com o Pai.

 

Poder-se-ia dizer que Jesus os carrega sobre os ombros e os leva para o alto, a uma montanha, lugar da revelação de Deus e da sua teofania; montanha que a tradição antiga identificou no Tabor (Tab’or, “perto da luz”).

 

E aqui ocorre a revelação: “Jesus foi transfigurado (passivo divino) diante deles”. Uma ação de Deus muda a aparência visível de Jesus, de modo que ele seja visto de outra forma. Mateus tenta expressar essa mudança escrevendo que “seu rosto brilhou como o sol” (Mt 17, 2). Lucas atesta que “seu rosto mudou de aparência” (Lc 9, 29), enquanto Marcos alude com muita discrição à mudança ocorrida, especificando, porém, que “suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas”, de uma brancura que ninguém sobre a terra poderia dar às vestes, sendo esta uma ação que somente Deus pode fazer.

 

Estamos diante do mistério a ser adorado, sem pretender explicá-lo ou mesmo apenas narrá-lo. O profeta Isaías, na hora da vocação, havia confessado: “Eu vi o Senhor” (cf. Is 6, 5), aludindo a tal evento inefável com a imagem do manto de Deus que enchia o templo (cf. Is 6, 1).

 

O que aconteceu permanece indizível, e mesmo quando os Padres da Igrejainterpretarem essa brancura resplandecente recorrendo à metáfora das “energias divinas incriadas” presentes no corpo de Cristo, eles aprofundarão o mistério, mas não o descreverão.

 

O branco é a cor da luz, é a cor do mundo celestial (cf. Dn 7, 9), do céu aberto, e nada sobre a terra se aproxima dele ou pode produzi-lo. São as criaturas do céu, os anjos que são luminosos, vestidos de branco, e somente Moisés teve um rosto luminoso que refletia a luz, tendo visto Deus, Aquele que era a luz (cf. Ex 34, 29-35). Jesus não reflete a luz de Deus, mas, graças à ação do Pai, é luz divina, é a luz do Filho amado.

 

Nessa visão apocalíptica, fazem-se presentes Elias e Moisés, que conversam com Jesus: Elias, aquele que, segundo a profecia de Malaquias, precederá a vinda do Senhor (cf. Ml 3, 23-24), e Moisés, o profeta escatológico a quem deve se dirigir a escuta (cf. Dt 18, 18), tornam-se as testemunhas de Jesus. Eles representam a profecia e a lei que, concordes, reconhecem em Jesus o seu pleno cumprimento.

 

Jesus, portanto, não é Elias redivivo (cf. Mc 6, 15), nem Moisés, nem um dos profetas, mas, como declara a voz que veio do céu, é o Filho, o amado, a quem deve se dirigir a escuta. Elias, que resume em si todos os profetas, vê em Jesus aquele sobre o qual todos haviam profetizado; Moisés, que pedira para ver a glória de Deus (cf. Ex. 33, 18), é finalmente ouvido.

A conversa entre Jesus, Elias e Moisés é um diálogo de concordâncias, de convergências, de cumprimentos. Marcos não nos diz o tema desse diálogo – ao contrário de Lucas, que indica “o êxodo” de Jesus como o assunto da conversa (Lc 9, 30) –, mas testemunha a continuidade da fé, o acordo entre antiga e nova aliança, a profecia e seu cumprimento. A mensagem é doxológica!

 

Então, Pedro intervém, talvez também em nome dos outros, e diz a Jesus, chamando-o de “rabi” (mestre), que a situação de que são testemunhas é beleza e bem-aventurança. Ele gostaria de fixar e prolongar essa condição e, no seu entusiasmo, está disposto a construir três tendas, não para si e para os outros dois discípulos, mas para Jesus, Elias e Moisés.

 

Ele está talvez ciente de ver o reino de Deus que veio com poder? Ou aquele era apenas um momento de revelação e de iluminação, a experiência de uma presença elusiva de Deus em Jesus?

 

Em todos os casos, Pedro balbucia, toma a palavra, sem saber bem o que diz, porque está tomado de medo, como lhe aconteceria também na hora da agonia de Jesus no Getsêmani. Suas palavras, contudo, são inadequadas em relação ao mistério que ele está contemplando, sinal da vinda do tempo messiânico, do reino de Deus que veio na carne de Jesus.

 

E, assim, uma nuvem envolve os três discípulos na sua sombra. É a nuvem da Shekinah, da Presença, é a morada de Deus que, no êxodo, é o sinal da sua glória. Aquela nuvem que estava sobre o Sinai, que tinha guiado o povo no deserto e que havia preenchido o templo de Jerusalém, fixando nele a morada de Deus, agora é aqui presença divina, glória do Filho que, envolvendo os três discípulos, fá-los ouvir a palavra do Pai: “Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: ‘Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!’ (cf. Sl 2, 7; Gn 22, 2; Dt 18, 18)”.

 

Se, no batismo no Jordão, a voz do Pai havia ressoado apenas sobre Jesus (cf. Mc 1, 11), aqui a revelação é para os três discípulos: Jesus é o Filho, é verdadeiramente o único Filho amado, e ele deve se dirigir a escuta. Shema’ Jisra’el (Dt 6, 4): o convite dirigido a Israel a escutar Deus se torna aqui convite para escutar Jesus. Escutar a ele, não os próprios medos, nem os próprios desejos, nem as próprias imagens ou as próprias projeções sobre Deus. As Sagradas Escrituras (Moisés e Elias) também devem ser escutadas através dele, que, segundo o quarto evangelho, é a Palavra de Deus dirigida ao Pai, a Palavra que é Deus (cf. Jo 1, 1).

“E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesuscom eles.” A narração do evento termina de modo abrupto. Os discípulos olham ao seu redor e não veem mais ninguém, exceto Jesus, o Jesus totalmente humano, humaníssimo, a quem eles sempre viram, o Jesus seu rabi e profeta que haviam seguido. Nada mais aparecia em Jesus, mas aquela transfiguração de que haviam se tornado testemunhas permanecerá nos seus corações como enigma e depois, após a Páscoa, como mistério. Pedro se lembrará dele na sua Segunda Carta, re-evocando sua qualidade de “testemunha ocular da sua glória sobre a alta montanha” (cf. 2Pd 1, 16-18).

 

Depois do Primeiro Domingo de Quaresma em que contemplamos Jesus tentado pelo demônio, com grande sabedoria, o ordo litúrgico nos faz contemplar Jesus transfigurado na glória do Pai. Somos preparados, assim, para a memória de sua agonia no Horto das Oliveiras, ocorrida na véspera de sua paixão, e depois para sua ressurreição dos mortos, quando o Pai o fará se reerguer para a vida para sempre.

 

Assim como Pedro e os outros discípulos, tentamos seguir Jesus, embora nem sempre o compreendendo e sendo incapazes até de permanecer somente vigilantes ao seu lado. Mas Jesus permanece fielmente “conosco”, se pelo menos tentarmos acolher a voz do Pai que nos pede para escutá-lo.

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

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