A fé – entre o público e o privado

Notícias 2 março 2019  •  Tempo de Leitura: 3

No passado recente, proliferaram os discursos acerca da privatização da religião. Em termos gerais, muitos concluíam, a partir da evidência de que as referências religiosas se tornaram plurais nas sociedades modernas, que a religião tinha, como único lugar, a consciência e as práticas familiares. Em termos políticos, imaginou-se um espaço social neutro sob o ponto de vista religioso. A esse imperativo de ordem política correspondeu a interiorização, por parte dos crentes, de uma religiosidade cercada pelo desejo de construção de si. É esse tipo de interioridade religiosa que alimenta hoje muitas das dinâmicas religiosas: leituras, peregrinações, retiros, etc. São mais raros os contextos em que a fé seja explicitamente mobilizadora de uma causa social ou reforce as motivações para a construção da nossa experiência coletiva.

 

Paradoxalmente, esta navegação para o interior de si, que descreve, preponderantemente, as tendências religiosas, é contemporânea da celebração pública da notoriedade de certas personalidades do campo religioso. Recorde-se que a Times Magazine, em 1975, elegeu Madre Teresa de Calcutá como personalidade do ano – ela que, em 1979, veio a receber o prémio Nobel da Paz. Ou, ainda, que algumas das personalidades, que assumimos como bandeira da luta pelos direitos humanos, na história contemporânea, são atores com uma forte inscrição religiosa: Gandhi, Luther King, Desmond Tutu, Dalai Lama. E, ainda, no quadro de receção global de João Paulo II, as montagens mediáticas tendiam a apresentá-lo como «grande sacerdote dos direitos humanos», um «perito em humanidade». Bento XVI foi celebrado como um dos intelectuais de referência nos debates sobre as grandes questões da nossa contemporaneidade. Francisco, em 2014, estreou-se na capa da edição americana da revista Rolling Stone, num contexto de reconhecimento da sua capacidade para influenciar os debates na cena pública. Hoje, da esquerda à direita, de norte a sul, muitos citam o Papa Francisco acerca das coisas que importam a todos. Num tempo de erosão do crédito das instituições religiosas, algumas personalidades religiosas tornam-se, assim, símbolos de valores amplamente partilhados, sem que a dimensão confessante das suas motivações inviabilize a possibilidade de serem ouvidos por muitos. Pelo menos, desde João Paulo II, os Papas católicos contribuíram, de facto, para a construção da opinião pública – particularmente, nessa modalidade recente que é a opinião pública global.

 

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