Os Sem-Natal

Crónicas 20 dezembro 2017  •  Tempo de Leitura: 8

Não sou visitadora de prisões, mas fui a vários estabelecimentos prisionais nas últimas décadas. Vou a pedido de reclusos, mas também a convite das direcções das prisões ou de quem lá trabalha. Vou porque me faz sentido aceitar o desafio e nunca me ocorreu recusar ir a uma cadeia. Nesta lógica, acabei por conhecer mais de uma dúzia de prisões e umas boas centenas de presos.

 

Impressiona sempre estar cara a cara com quem vive diariamente numa cela e cumpre pena pela sua falta, especialmente quando se trata de penas pesadas ou condenações para a vida. Nunca perguntei a um recluso porque é que estava preso porque não me compete saber e, muito menos, julgar quem já foi julgado e condenado. Mas interroguei-me muitas vezes sobre o que teria levado esta mulher ou aquele homem àquele lugar.

 

Entre todas as cadeias onde estive houve umas que me interpelaram de forma mais brutal. Por cem anos que viva não conseguirei nunca apagar da memória o impacto dessas visitas, nem o eco das conversas que mantive com reclusas e reclusos em espaços onde nos sentamos muito próximos uns dos outros, sem barras de ferro a separarem-nos.

 

A Prisão-Escola de Leiria, que recebe rapazes muito jovens, entre os 16 e os 21 anos, foi uma das cadeias que não esqueço. Vale de Judeus, onde vivem os condenados a penas mais pesadas foi outra que me marcou e onde voltei mais do que uma vez. As cadeias de mulheres, como Tires, também deixam a sensação de que uma parte de nós fica para sempre com elas.

 

Em Leiria os rapazes são muito novos, mas alguns deles já cumprem penas muito duras e muito longas. Olhando para eles, sentada de frente para todos, o pensamento dispara automaticamente em modo interrogativo, num loop incessante de perguntas. Como terá sido a sua infância? Quem serão as pessoas importantes nas vidas deles? Terão mãe, pai, irmãos, avós? E amigos? Onde estavam quando eles cometeram os crimes pelos quais estão a pagar? E onde estarão agora? Será que os visitam?

 

Todos os miúdos podiam ser meus filhos e um deles prendeu a minha atenção por ter qualquer coisa de criança, que me soou familiar. Talvez fosse o ar aparentemente sossegado e a maneira tímida de olhar. Filho de estrangeiros, estava ali sozinho desde o início e tudo indica que cumprirá a pena sem receber a visita de pai ou mãe. Ao seu lado havia de tudo, dos mais imberbes aos que, sendo novos, já têm as caras muito marcadas; havia jovens frágeis e jovens atléticos, robustos; rapazes com olhar acossado e rapazes com ar provocador. Uns mais curiosos, outros mais distantes, mas nem por isso menos atentos. Bem comportados, ouviram e falaram. Fizeram perguntas e interessaram-se.

 

Vi-os chegar, em bandos, todos de fato macaco azul escuro, os de origem africana com enormes cabeleiras afro, daquelas que marcaram os anos 70 (disseram-me que a primeira coisa que muitos rapazes fazem na prisão é deixar crescer o cabelo por ser uma afirmação de liberdade. Hoje em dia são raros os africanos que usam o cabelo daquela forma redonda, exagerada, mas em Leiria havia vários com cabeleiras exuberantes, gigantes), e assisti à maneira ordeira como se sentaram e esperaram por instruções dos guardas. Irrepreensíveis, uns e outros. Pelo menos enquanto durou a visita.

 

Em Vale de Judeus também me sentei numa grande roda de reclusos que fizeram perguntas e contaram coisas das suas vidas, mas também recitaram poemas de sua autoria e mostraram livros e escritos que fazem na prisão. Os guardas estavam na mesma sala e todos vimos e ouvimos as mesmas coisas. A primeira vez que fui a Vale de Judeus, fui com o meu pai, que era um conversador nato, e contava com ele para as conversas à volta, mas a tarde foi tão marcante que saímos de lá sem palavras e permanecemos calados até chegarmos a casa. Não conseguimos trocar nada a não ser um silêncio embargado, estrangulado por nós impossíveis de desfazer. O peso que se abateu sobre cada um impediu-nos de falar de tantas vidas desperdiçadas, vividas numa cadeia que tem o estigma da distância e de ‘estar fora do mundo’, pois ninguém a vê de lado nenhum e os reclusos também só se vêm uns aos outros durante anos, décadas a fio.

 

As memórias fortes das idas às prisões voltaram a estar muito presentes por ter assistido a uma TED talk recentemente republicada, gravada em 2014 dentro da Muncy State Prison, na Pensilvânia, EUA. Dez mulheres condenadas a prisão perpétua e sem esperança de saírem da cadeia até morrerem, cantam em coro a sua experiência de ‘lifers’ (sentenced to life in prison) e partilham os seus sentimentos, os seus sonhos e os seus medos. “I’m not an angel” canta Brenda Watkins, a vocalista. “I’m a woman, I’m a grandmother, I’m a daughter, I have a son. I’m not an angel, I’m not the devil. I came to jail when I was so young”

 

 

 

 

Uma condenação perpétua na Pensilvânia quer dizer exactamente isso: para toda a vida, sem possibilidade de comutação da pena ou de existirem períodos de liberdade condicional. Estas mulheres estão a envelhecer na prisão e algumas delas passaram lá os últimos 30 anos de vida. Foram julgadas e condenadas quando eram muito novas (uma delas aos 14 anos), mas continuam a dizer que aquela não é a sua casa. Cantam para fazer a catarse dos seus medos de morrerem sozinhas, sem voltarem a estar com as suas famílias, mas também para dizerem os seus nomes e se fazerem ouvir cá fora. Algumas, para mostrar que muita coisa mudou dentro delas ao longo de todos estes anos. Não falam do que fizeram nem se ouve a palavra ‘arrependimento’, mas percebe-se o valor da partilha sobre essa transformação interior.

 

O vídeo mostra uma talk radicalmente diferente do que é habitual no TED, mas nesta semana que antecede o Natal é importante parar para ouvir este e outros coros de vozes que nos fazem pensar em todos os Sem-Natal do mundo, sejam vitimadores ou vítimas*.

 

* Vítimas no sentido mais abrangente do termo, note-se, não apenas vítimas de ofensas, abusos e crimes punidos com penas de prisão. Vítimas de doenças, acidentes e catástrofes naturais, vítimas de mães e pais que maltratam, vítimas de filhos que abandonam, vítimas de prepotências, vítimas de infâmias, vítimas do sistema e de quem gere mal o que devia gerir bem, vítimas de perseguições e muitas outras aflições, pois todos os que se sentem vítimas são e serão sempre pessoas para quem o Natal é um tempo especialmente árido e penoso.

Artigos de opinião publicados no Observador

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