DIGNOS DE SER AMADOS

Crónicas 23 novembro 2017  •  Tempo de Leitura: 4

Cada cultura vive a doença de forma diferente. Os antropólogos sabiamente recomendam que se distinga entre a patologia propriamente dita, enquanto disfunção orgânica, e a enfermidade, isto é, o impacto social da doença. Numa sociedade, como a de Jesus, regulada por um regime religioso assente na ideia de pureza (étnica, ritual, moral…), o preço existencial da doença era elevadíssimo, pois atirava mulheres e homens para uma exclusão sem retorno. Nesse sentido, o que os enfermos mais ansiavam não era tanto a resolução de uma anomalia orgânica quanto a possibilidade de desfrutar da vida plenamente, a par de todos os demais. Nas culturas mediterrânicas do século I, e para mais camponesas e pobres como era a da Palestina, viver desintegrado da proteção familiar ou do grupo equivalia à miséria. Além disso, as próprias leis religiosas reforçavam a distância intransponível que separava o enfermo de Deus e do sagrado. Os doentes que povoam os textos evangélicos representam, porventura, o sector mais estigmatizado do seu tempo. Daí também a força profética da opção de Jesus, que se dedicou a eles, escolhendo-os como alvo primeiro da misericórdia daquele Deus a que ele chamava Pai. A grande surpresa era esta: nas palavras e nos gestos de Jesus, Deus chegava à história não como o Deus dos justos mas como o Deus dos que sofrem. Diferentemente de João Batista, que não curou ninguém mas empenhou-se unicamente em introduzir uma viragem religiosa e ética, Jesus proclamou um Reino de Deus, revitalizando, em concreto, as vidas adoecidas e extenuadas e libertando-as dos vários males. Para o profeta de Nazaré não havia dúvidas: Deus coloca no centro da sua solicitude o sofrimento humano. Não admira que os doentes, os atormentados ou os feridos, mesmo quando permanecem anónimos, sejam protagonistas dos relatos evangélicos.

 

Jesus viveu muito depois de Hipócrates (450-350 a.C.), cuja medicina não invocava os deuses mas diagnosticava causas e sugeria tratamentos com base num conhecimento do corpo humano. A sua implementação era, porém, muito lenta, mesmo se esse saber era cada vez mais reconhecido, inclusive pela Bíblia. O texto do Eclesiástico 38, 1-15, por exemplo, faz um curioso elogio à arte médica e farmacêutica. Mas a hierarquia não deixa de estar ali vincada: se adoeceres reza primeiro, afasta-te do teu pecado, purifica-te, oferece sacrifícios; em seguida dá lugar ao médico, pois “a sua arte te é necessária”. Um fim de mundo empobrecido como a Galileia não podia aspirar à presença de médicos nem sequer alcançar os grandes santuários terapêuticos pagãos de Esculápio, Isis ou Serapis, que tanto marcaram o mundo grego. O seu recurso eram os curandeiros populares, os exorcistas, os magos ou homens virtuosos, que operavam mais por via de uma pretensa relação estreita com Deus do que através de técnicas terapêuticas.

 

Jesus certamente se parecia com os terapeutas e exorcistas populares do seu tempo, mas também era diferente. Nunca se vê nos evangelhos Jesus agir, à maneira dos magos, forçando a divindade a intervir ou recorrendo a amuletos ou a cenografias mágicas. Não era também um médico, não estabelecia um diagnóstico nem empregava técnicas clínicas. A sua atuação era diversa. Não se centrava apenas no mal físico, mas introduzia o doente numa relação existencial nova, com Deus e com os outros, transmitindo-lhe vitalidade e confiança. Jesus não parte de técnicas, mas do amor curativo. Para Jesus, curar é testemunhar a cada mulher e a cada homem, quaisquer que sejam as circunstâncias, que eles são dignos de ser amados. Jesus liberta dos obscuros sentimentos de culpabilidade e de abandono em relação a Deus e desloca-nos para a certeza interior da sua bênção.

 

Revista Expresso | 2350, 11 de novembro de 2017]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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