A Parábola dos Talentos (II) – o tratado do dom

Crónicas 27 agosto 2020  •  Tempo de Leitura: 6

Ainda que pensemos como o exemplo é sempre o melhor mestre, de facto, à boa moda judaica, Jesus desafia-nos a sermos protagonistas numa parábola exemplar (ou, quem sabe, nem tanto). Mas em vez de nos deixar uma mera lição de moral, provoca-nos a incorporar o sentido do intercâmbio entre o dar e receber.

 

A parábola é notável em demonstrar como o dom encerra dois paradoxos. O primeiro está patente no seu dinamismo: dom possuído é dom desperdiçado. O dom só adquire 'peso' e ‘cota de mercado’ (tal como o peso em ouro de um talento) quando nos dispomos a abrir mão dele. Só permanece na passagem entre mãos. O dom não se reduz a um 'objeto'. A sua essência reside na fluidez.

 

Ele tem de escoar como um regato de água viva, um movimento imparável de amor puro. O dom possui o condão de nos converter em canais, efluentes de um rio cuja nascente é o Coração de Deus. Portanto, Este administrador não desejou apenas que o Seu Dom/talento desembocasse naqueles servos, mas que neles e por eles fluísse para uma multidão de gente! Por isso, cinco talentos renderam outros cinco (Mt 25,16), e dois talentos renderam outros dois (Mt 25,17).

 

Voltando ao paradoxo, quem joga o jogo do dom aprende a ganhar, perdendo’ e a multiplicar, dividindo...o dom rende no desprendimento, prospera na gratuidade e sobeja na partilha. A Boa notícia do dom é ser uma fonte vital de abundância nos corações que aprendem a dar e receber, naqueles que aceitam e agradecemcom a sua vida.

 

O segundo paradoxo encontra-se no efeito do dom. Ele não é uma posse, mas tem que ser intimamente apropriado, assimilado como 'meu'! O dom só fecunda quando é saboreado, enraizado na gratidão, para depois germinar e crescer. Essa experiência, esse processo de gozo e enraizamento do dom chamamosRECETIVIDADE. Depois, num gozo crescente, despontará o fruto da GRATUIDADE em dar e dar-se a si mesmo. Deste modocompleta-se o círculo que, por sua vez, iniciará outros. Esse é o milagre do dom. Os seguintes versículos da parábola são uma expressão desse milagre:

 

«Aquele que tinha recebido cinco talentos aproximou-se e entregou-lhe outros cinco, dizendo: 'Senhor, confiaste-me cinco talentos; aqui estão outros cinco que eu ganhei.' (…) Veio, em seguida, o que tinha recebido dois talentos: 'Senhor, disse ele, confiaste-me dois talentos; aqui estão outros dois que eu ganhei.'» (Mt 25,20.22)

 

Dois servos apresentam ‘contas’ ao seu Senhor. Não se limitaram a mostrar-lhe o que fizeram dos talentos/dons que receberam, mas acima de tudo como eles mesmos se fizeram seus administradores.Cada qual gerou em gratuidade e numa abundância estupenda (em duplicado) mediante a recetividade de que era capaz. Em ambos observamos as duas atitudes: a GENEROSIDADE em dar ao Senhor o que receberam e a ALEGRIA espontânea com que o fazem.

 

Por isso, este Senhor dá a ambos a mesmíssima resposta: «'Muito bem, servo BOM e FIEL, FOSTE FIEL no pouco, MUITO te confiarei. ENTRA NA ALEGRIA do teu senhor» (Mt 25,21.23).

 

Ele não declara o que acontecerá no futuro, mas CONFIRMA o que já acontece: cada um permaneceu fiel ao dom que recebeu, sendo pouco comparado à muita abundância que rendeu. Por outro lado, dando e doando-se experimentaram a ALEGRIA e o GOZO de viverem agora nesse dinamismo. Senhores de dons, tal como o seu Senhor, generosos na Sua Bondade e alegres na Sua Alegria!

 

Porém a recetividade não é um processo automático, porque não obedece a nenhuma lei de causalidade, mas pertence ao reino da liberdade. O dom é como uma semente frágil sujeita a algumas contrariedades: não pode ser forçado, nem sustentado num sentimento de dever. Também se pode diluir na indiferença do destinatário, ou pior, anular-se na incapacidade de ser reconhecido como tal e confundido com uma obrigação ou um peso. Tal é o ‘exemplo’ do servo que recebeu um talento:

 

«Veio, finalmente, o que tinha recebido um só talento: 'Senhor,disse ele, sempre te conheci como homem duro, que ceifas onde não semeaste e recolhes onde não espalhaste. Por isso, COM MEDO, fui esconder o teu talento na terra. Aqui está O QUE TE PERTENCE.'» (Mt 25,25)

 

O drama deste servo não é a sua incapacidade para as contas. Não é um problema financeiro. Tudo começa logo no início da frase «sempre te conheci»: nunca VIU nem RECONHECEU QUEM era realmente aquele Senhor. Em vez de um Senhor BOM e GENEROSO, viu um «homem duro». CEGO pelo MEDO, enterra o dom «na terra» como um fardo que anseia desembaraçar-se rapidamente. Não reconheceu nem o dador, nem o dom. Por essa razão, quis devolver o que não lhe pertencia. Enterrou o dom e sepultou a alegria de viver a gratuidade. Em vez de canal, converteu-se num dique…

 

Atenção. Embora o Senhor apelide este servo de «mau e negligente» (Mt 25,26) a parábola não é moralista. Bem-intencionado, o servo até decidiu ‘conservar’ o dom. Mas foi negligente no essencial e isso é realmente mau porque perdeu o melhor da vida e a sua alegria. A meu ver, a tónica é a seguinte: estar atento. Não banalizar o dom. Velar pelo gozo de o reconhecer e agradecer. Esperar que a semente da gratidão germine e desejar contagiar a alegria em dar e receber.

 

Ainda que tudo isto vá falhando aqui e ali, não se perturbe o nosso coração. Voltemos sempre ao princípio: O Senhor é BOM!

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