A gramática da oração – parte II

Crónicas 18 julho 2019  •  Tempo de Leitura: 8

A oração, por um lado, é inútil. Horóscopos ou cartas de Tarot prometem-nos sempre coisas muito úteis e convenientes: sucesso profissional, a companhia ideal, sorte ou dinheiro. Não que sejam desejos ilegítimos, mas orar não me subtrai aos problemas que devo resolver, às escolhas que preciso de assumir e aos desafios que tenho de enfrentar. Orar não é um atalho para obter favores de um “deus” convertido em “génio da lâmpada”. É um desperdício total esperar que podemos convencer Deus a colocar o destino a favor dos nossos desejos. E o que distingue um pagão de um místico é essencialmente a busca emreformular e redirecionar o desejo. Por isso, na ótica de um pagão, orar não serve rigorosamente para nada…certamente é-lhe mais útil confiar na astrologia, no horóscopo, ou noutra coisa qualquer a ver se o cosmos joga a seu favor…

 

Na tradição bíblica, a oração caracteriza-se acima de tudo como uma atitude passiva de abandono. Por isso, o judaísmo ainda hoje conserva como oração mais importanteo “Shemá”: «Escuta Israel (Shemá Israel)! O Senhor é o nosso Deus, o Senhor é Único!» (Dt 6,4). O ponto de partida da oração consiste na escuta e introspeção face aos acontecimentos, experiências, encontros e desencontros. A escuta orante é o exercício do discernimento e leitura de sinais para encontrarmos o seu sentido mais profundo e peneirar os absurdos, os enganos e as ilusões. Não poucas vezes, dessa escuta pode brotar um significado vital que nos interpela a viver de um modo novo.

 

Por outro lado, a oração pode mudar imensas coisas – não o que nos acontece, mas essencialmente muda-nos. Melhor dizendo, a oração não resolve problemas, antes resolve-nos, ou segundo a linguagem bíblica, converte-nos. A primeira experiência orante é o desapego de si. Só o facto de nos predispormos a fazer algo que não “serve” para nada e nos esvazia o ego é profundamente libertador!

 

Muitas vezes nem sequer é necessário esperar pela vontade de orar. Basta a disciplina – o que nunca é fácil para introduzir um ritmo e cadência que convertem a oração num ato puramente oblativo que não dependa apenas de um impulso. A oração é essencialmente um abandono, um descentramento do ego para colocar o Pai no centro. Os fariseus deturpavam por completo a oração, instrumentalizando-a para insuflarem a sua vaidade, como tão bem ilustra a parábola do fariseu e do publicano (Lc18,9-14) ou na advertência de Jesus:

 

«Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua confirmação. Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, ora em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de confirmar-te» (Mt 6, 5-6).  

 

A oração faz-se “no segredo”, palavra que implica de imediato duas consequências: a intimidade e a humildade - descentrar-se, desconstruir o ego e deixar que o Pai ocupe os espaços vazios do coração. Jesus estava totalmente centrado no Pai. Toda a sua vida girava em torno da suaentrega filial, do abandono ao Seu centro, de tal modo que dizia:

 

«O meu alimento consiste em fazer a vontade daquele que me enviou» (Jo 4, 34); «não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou» (Jo 5, 30).

 

Toda a sua vida é o reflexo perfeito dessa rendição plenamente confiante e obediente ao Pai. Por isso, Jesus ensina-nos, pelo exemplo, como se vive a partir da oração. A vida assim torna-se profundamente fecunda, um manancial de Graça e Bondade transbordante que cura,liberta e salva.

 

Então, a partir de agora, será legítimo ficarmo-nos por aqui e pensar que o desejo não joga nenhum papel importante na oração? Não. De modo nenhum. Jesus encorajava os discípulos a pedir (Lc 11,9-10). Mas, se a oração não serve o ego nem os nossos caprichos, então para quê pedir? Deus já não sabe do que precisamos? Em primeiro lugar, pedimos para dizer não ao fatalismo. Não nos resignamos diante dos problemas, desafios, dificuldades da vida, e sobretudo do mal. Nada disso é indiferente ao Pai.

 

Pedir ao Pai é confiar que n’Ele encontramos Salvação. Não importa como, mas fiamo-nos que Ele está Connosco na tribulação e, acima de tudo, irá abrir-nos um êxodo, um caminho de libertação. Pedir, então, não se trata de um exercício egocêntrico, mas algo muito mais profundo: dar ao Pai as condições propícias para atuar na vida que realmente sentimos e vivemos (dorida, imperfeita, caótica) para que, do Seu jeito e do Seu modo…no Seu tempo…ela seja realmente Salva. Trata-se de uma forma muito boa e eficaz de purificar a nossa vontade e de sintonizá-la com a Vontade do Pai que só deseja o melhor para nós.

 

É vital a persistência no pedido. Peçamos sempre até que não haja sequer uma brecha de dúvida; até transbordarmos de confiança nesse Pai que escuta e deseja-nos o melhor. Não se trata de todo de uma falta de atenção do Pai que exige a petição. É, antes de mais nada, um trabalho interior: fortificar a fé num Pai capaz de nos Salvar, sem deixar de contar connosco. Orar é um “espaço de manobra” em que mantemos o coração aberto e confiante diante da Graça. E Jesus é a Salvação em Pessoa! Por isso, os pobres e a gente sofrida de Israel não hesitavam em pedir-lhe, ou melhor dizendo, a orar-lhe com frases simples e carregadas de esperança:

 

«Se quiseres, podes purificar-me» (Mc 1,40); «Jesus, filho de David, tem compaixão de mim» (Lc 18, 38); «Eu creio! Ajuda a minha pouca fé!» (Mc 9, 24); «Senhor, que eu veja!» (Lc 18,41).

 

E, da parte de Jesus, a resposta era sempre a mesma: «a tua fé te salvou»

 

Além disso, Jesus não ensina a orar com recurso a fórmulaslongas ou monótonas: «nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos» (Mt 6,7).

 

O Pai conta com a nossa própria sensibilidade e estilo original de nos dirigirmos a Ele. O que conta realmente é o fazermos de coração aberto e confiante. Nesta coerência, o Pai Nosso será a única oração formalizada ou formulada. Porquê? Simplesmente porque não é possível nem práticosermos espontâneos coletivamente. O “Pai Nosso” pelo seu caráter comunitário e universal exige unirmo-nos «numa só voz» como uma só família humana, salva e redimida.

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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