A gramática da oração – Parte I

Crónicas 4 julho 2019  •  Tempo de Leitura: 6

O que é, afinal, orar? Jesus nos evangelhos dá-nos múltiplas pistas e métodos. Todavia, penso que antes de entrarmos na perspetiva da oração jesuânica, devemos primeiro perceber a sua génese na tradição bíblica. Jesus era judeu e entendê-lo sem esse facto é redutor e não nos ajuda a penetrar no mistério de Deus que se revelou na Aliança judaica.

 

A palavra hebraica que define oração é «tefillah»e possui dois sentidos. O primeiro traduz-se por «introspeção», interiorizar-se, aprender a ‘ver dentro’ e subjugar-se ao discernimento e julgamento de Deus. O segundo, igualmente importante a reter, exprime a ação de «atar», «ligar»ou mesmo «colar». Isto significa que a oração implica estabelecer uma ligação, um laço forte e profundo entre o orante e o Criador, à semelhança da relação entre um pai e um filho.

 

Desde as suas origens os judeus usam as filactérias («tefilin»,plural de «tefilah») que consistem em tiras de couro enroladas à volta do braço e mão esquerdos e da testa com duas caixinhas de couro, cada qual com pequenos trechos da Torah (os primeiros cinco livros da Bíblia, os mais importantes que no seu conjunto exprimem a «Lei» ou «Ensinamento» e encarnam a presença de Deus no meio do seu povo).É uma forma simbólica e bela de cada judeu sentir-se ligado, ‘atado’ao seu Deus quando reza.

 

Orar é realizar a Aliança na intimidade; como um cordão umbilical que nos mantém próximos, íntimos e inteiros na dependência de Deus. É ainda mais bonito perceber que a primeira tira é enrolada no antebraço esquerdo, de tal forma que a Torah permaneça bem junto do coração. As filactérias que contêm a Torah estão estrategicamente amarradas em três partes vitais do corpo: ocoração(lugar dos sentimentos), a fronte(lugar do entendimento e da ‘alma’) ea mão(lugar da ação). Então, orar com as filactérias é uma forma de cumprir o primeiro mandamento da Torah: «Amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças»(Dt 6,5).

 

O povo de Israel orava várias vezes ao dia entoando cânticos e salmos, bem como algumas preces ou fórmulas: o Shemá(oração de escuta), as Dezoito Bênçãos(oração de petição e submissão à realeza de Deus) e o Halel (oração de louvor) que inclui a expressão «Halleluyah»e significa «Louvai»(Hallelu) «a Deus»(Yah = diminutivo do nome de Deus: Yahvé).

 

Em Israel, Deus era sempre evocado com solenidade e distância reverencial: Adonai (Senhor) ou Adonai Tzevaot (Senhor dos Exércitos), Elohim (O Altíssimo), Yahvé, ou El-Shaddai (O Omnipotente), entre outros. Contudo, Jesus foi absolutamente original na forma como se referiu a Deus. Simplificou ao máximo a forma de orar e de se ligar a Ele. Sempre O invocou como “Abbá”, que traduzido do arameu significa «Pai» ou «Paizinho». “Abbá” era o balbucio característico das crianças que, mal sabendo falar, gaguejavam a palavra “papá”. Por isso, é um termo afetivo e familiar. Palavra que, apesar de evocar respeito e submissão à figura paterna, acentuava a ternura e a intimidade. Só era proferida no contexto familiar e doméstico. Jamais no contexto religioso. Por isso, mais do que as filactérias, proferir esse nome era a expressão mais simples e autêntica da ligação íntima que Jesus estabelecia com o Pai.

Ninguém ousaria invocar Deus no Templo ou na sinagoga com esse nome. No judaísmo seria demasiado desrespeitoso dirigir-se a Ele nos termos de Jesus. Consequentemente, não é nesses locais sagrados que o encontramos a orar ao Pai, nem tampouco os evangelhos mencionam que ele usasse as filactérias. Qualquer espaço aberto, recolhido e sossegado, era sempre lugar privilegiado de oração: no deserto (Lc 5,16), nos campos (Mc 1,35)...para ele só era realmente importante dirigir-se ao Pai «em espírito e verdade»(Jo 4,23), liberto de qualquer condicionalismo ritualista.

 

O Pai está presente em toda a Criação. Por isso, os lírios do campo e as aves do céu (Lc 12, 24-28), os campos dourados prontos para a ceifa (Jo 4, 35), uma mulher que coze o pão (Mt 13,33), ou até a pesca de peixe (Mt 13,47) lembravam-lhe sempre a presença do Pai. Jesus vive enamorado pela Sua ternura e Bondade: só o Pai é Bom (Mc 10,18), a tal ponto, que conta e conhece cada fio de cabelo das nossas cabeças (Lc 12,7) e cuida até dos pardalitos (Mt 10,31).

 

Quando Jesus orava, inclinava os olhos para o céu (Mc 7,34; Jo 17,1). Os templos e sinagogas têm quatro paredes, mas o céu estende-se em todas as direções: do oriente ao ocidente, de norte a sul. O Deus do ‘templo’ só podia alcançar aqueles que o visitassem, mas o Pai que está ‘nos Céus’ abraça toda a Criação no seu regaço.

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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