THE GAME

Crónicas 22 novembro 2018  •  Tempo de Leitura: 5

A

nova época da história em que estamos, esta era digital, começou como um jogo. E diz-se que nasceu da visão de um grupo de miúdos californianos nos anos 70, engenheiros quase todos, rebeldes, amantes da contracultura, meia dúzia de génios de garagem, mas com a capacidade de deixar para trás o século XX, e de um modo cujo impacto ainda se está provavelmente longe de alcançar. Graças a eles, hoje a maior parte dos seres humanos compreende que está dentro de uma revolução — antes de tudo tecnológica, mas também civilizacional, também antropológica — e que esta tem um objetivo preciso: mudando a forma dos nossos gestos de funcionamento com a realidade visa alterar a configuração da nossa experiência do mundo e, por arrasto, da consciência que temos de nós próprios. Um outro elemento relevante é que esta viragem epocal se realiza sem recurso a uma ideologia, sem o agitar da bandeira do nascimento de um homem novo, como aconteceu com outras transformações sociais e políticas num passado recente. E não faz apelo sequer a uma nova estética, como era típico dos movimentos culturais anteriores. Aparentemente, trata-se apenas do florescimento da tecnologia, com a proliferação cada mais acelerada de ferramentas, dispositivos e aplicações, seja o algoritmo do Google, o ecrã intuitivo do iPhone ou indutores de sociabilidade como o Facebook e o Instagram. Mas modificando radicalmente a nossa prática do mundo, não se modificam apenas os nossos hábitos, os nossos modos de fazer ou as nossas dependências. Um dos gurus da revolução digital em curso, o norte-americano Stewart Brand, resume o que está sobre a mesa, de um modo muito claro: “Pode-se tentar mudar com esforço a cabeça das pessoas, mas simplesmente perdemos o nosso tempo. Mudem-se os instrumentos que as pessoas têm na mão e, aí sim, mudar-se-á o mundo.”

 

O termo “digital”, que genericamente descreve a época ou, segundo alguns, a transição epocal em que estamos mergulhados, deriva do latino digitus, que se pode traduzir por “numérico”. E o que lhe serve de suporte é a descoberta de que qualquer porção do real pode ser agora traduzida numericamente, transformada numa estrutura de dados, num algoritmo. Essa tradução numérica representa ao mesmo tempo um instrumento novo e uma forma diversa de vida: uma vida desmaterializada, aligeirada do peso das contingências, incrivelmente veloz, acessível a todos a qualquer hora (superando as restrições do tempo) e em qualquer lugar (superando as restrições do espaço). Definir, por exemplo, um computador como uma mediação tornou-se um modo de pensar arcaico. Os nativos digitais sabem que as novas máquinas são uma extensão deles mesmos, como um elemento a cada momento indispensável para operarem a sua relação com as coisas. Faço parte dos que consideram intrusivo o uso do telemóvel quando se está à mesa ou dos que se alegram com a sua proibição por algumas escolas. Mas sei que isso é o século XX a lutar com o século XXI, uma batalha que está perdida. Estamos no olho de uma tempestade e teremos, como indivíduos e sociedades, de encontrar uma via de equilíbrio que ainda não vemos clara. Porém, já não podemos agir como se tudo continuasse como dantes e não tivesse irrompido o “grande jogo”.

 

“The Game” (Einaudi, 2018) é o título de um ensaio do escritor Alessando Baricco que tem dominado a lista dos livros mais vendidos em Itália, e suscitado um interessante debate sobre o tempo presente. Baricco não receia passar por ingénuo ou panfletário no entusiasmo com que descreve esta nova estação da nossa Humanidade. E pode ser irritante na hipervalorização de elementos que diríamos tecnológicos como se representassem extraordinários patamares de civilização. Mas quando repete, “estou convencido de que existe algo de esplendidamente exato na suspeita de que não está a mudar apenas alguma coisa, mas tudo”, deixa-nos a pensar.

 

SEMANÁRIO#2403]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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