A PEQUENA MÚSICA DO OUTONO

Crónicas 15 novembro 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Há uma surpresa que nos espera quando partimos em busca da etimologia da palavra “outono”. Não a encontramos ancorada a qualquer ideia de declínio ou rendição, como provavelmente nos habituámos a pensar. Não é a renúncia resignada que nos revela a sua essência, nem a subtração nos ensina a sua gramática nem a melancolia de uma qualquer despedida é a sua voz. Por surpreendente que possa parecer, o outono é o contrário disso. E há, certamente, uma importante conversão do olhar que nos vem pedida se quisermos seguir aquilo que Albert Camus escreveu, com delicadeza e desassombro, sobre o seu significado: “O outono é uma segunda primavera.” Acrescentando a justificação seguinte: “Nessa estação, cada folha se torna uma flor.”

 

De facto, o termo latino autumnus (ou na outra forma possível, auctumunus) descreve isso: um tempo de crescimento, uma época propícia à abundância e à maturação, uma esplêndida cartografia (de cromatismos, de formas naturais, de odores...) capaz de nos inspirar na aventura sempre recomeçada de viver. Ele está colocado sob a dourada égide do verbo augere, que fala de mérito, de recursos e de recompensa. No outono, assistimos à exposição fulgurante que a natureza faz das suas metamorfoses, expressando nessa dança de cambiantes o seu indómito desejo de existir, e mostrando que este se realiza na aceitação do modo sempre diverso com que a vitalidade se declina. Esse espetáculo da transformação dialoga com as mudanças que nós próprios experimentamos e que nem sempre sabemos conduzir. Para sermos os mesmos, para aprofundarmos aquilo que somos, temos de mudar muitas vezes. O outono — esse laboratório da vida táctil — exorta-nos e consola-nos. Não é por acaso que o símbolo do outono é uma cornucópia transbordante de frutos de toda a espécie.

 

Os que compreendem verdadeiramente o outono são os que aprofundam a arte de colher, essa atividade tão difícil de praticar. Porque até o que brotou das nossas sementeiras e fadigas nos custa reconhecer, quanto mais o inesperado, o inédito, o inaudito. Por vezes, o verdadeiro fruto é o que não vimos, é o que nos exige uma segunda ou uma terceira visão, é o que nos chega de forma indireta ou com um atraso que exaspera. O mais comum é nos equivocarmos e não vermos que afinal o sentido pulsa mais na viagem do que naquilo que apressadamente tomámos como porto de chegada. E que o que surgiu espontâneo e inesperado no nosso caminho perfuma tanto a vida como o que resultou de uma vontade precisa e de um longo esforço deliberado. A arte de colher é uma arte para a qual não somos preparados e grande falta nos faz.

 

Depois da eloquência do verão, o outono parece um anticlímax, que não tem nada para nos dizer. Recordo, no entanto, aquilo que Marguerite Yourcenar contou, de como foi fundamental para ela a lição do jardineiro que lhe fez entender que somente no outono nos apercebemos da verdadeira cor da vida. A cor não é a pele que envolve a superfície, mas é a lenta expressão de uma virtude interior. O outono é um convite à sua contemplação. Mas para isso — e é também um desafio outonal — precisamos reencontrar o silêncio, a concentração, os caminhos despovoados, a nossa própria solidão que nos acalma. Precisamos colocar um casaco, as velhas botas nos pés e sair, sem esquecer a importância de fazer paragens, uma pausa que nos ajude a descobrir sob a paisagem coberta de folhas mortas o pulsar intenso da vida. Os contemplativos sabem o valor desta vagabundagem que lhes devolve não o gosto macerado de uma vida extenuada, mas o sabor de uma promessa maior do que a vida. O outono nutre-nos, assim, com uma gradual iluminação sapiencial.

 

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Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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