De que lado está o coração?

Crónicas 6 novembro 2018  •  Tempo de Leitura: 5

Há um intrigante dito rabínico que diz isto: “O homem insensato tem o coração colocado no seu lado esquerdo, enquanto que o sábio o conserva no lado direito.” Parece que estamos a entrar num árduo quebra-cabeças, verdade? É que, obviamente, temos todos o coração no lado esquerdo. Que significa então a máxima hebraica? Pretenderá afirmar que estamos condenados à condição de estultos e que entre os filhos do homem não há um que seja sábio, um único sequer? Mas um niilismo assim radical não é bem a forma de proceder da sabedoria rabínica (e da sabedoria em geral). Ali, em vez do niilismo prefere-se uma ironia que sirva de despertador, e em vez da resignação propõe-se a pedagogia de um caminho sempre a tempo de ser redescoberto. Ora, mais do que fomentar contorcionismos cardiológicos, a solução do provérbio é, afinal, enxuta, desconcertante e simples. O nosso coração está inevitavelmente à esquerda, claro, mas o coração dos nossos semelhantes bate do nosso lado direito. Insensato é aquele que ouve apenas o seu coração, alheado ou descrente do que pulsa no peito dos demais. Sábio é aquele que faz do coração dos outros o seu próprio coração.

 

O debate sobre de que lado está o coração, e onde o colocámos (numa qualquer periferia ou no centro da existência), é um debate de civilização que vem de longe, e que atravessa já, por exemplo, a filosofia antiga. Em Platão, o intelecto — não o coração — é o centro supremo do conhecimento, pois permite-nos a contemplação das ideias e das suas relações. E da mesma forma em Aristóteles, onde é graças ao intelecto ativo que a alma passa da potência ao ato, extraindo das imagens sensíveis as formas ou essências abstratas das coisas. Porém, não são desse parecer escolas mais marginais como a da tradição órfica e pitagórica, que defende que não o intelecto (nous) mas o coração (kardìa) é o lugar e o órgão decisivo da experiência vital. Nessa linha seguirá Plotino, que fala do coração como “centro da alma”, e a tradição mística posterior que terá o coração como ponto focal do contacto entre o humano e o divino, concentrando nele a raiz da vida e das suas potências decisivas.

 

Na época moderna, devemos a Pascal um aprofundamento significativo. Ele estabelece uma distinção entre “razão demonstrativa” e “compreensão intuitiva”, entre “esprit de géométrie” e “esprit de finesse”. A compreensão intuitiva é aquela típica do coração, colocado como núcleo vital do que somos, pois ele é superior à razão na capacidade de colher e interpretar o avassalador enigma que a existência constitui. Por isso, Blaise Pascal cunhará a máxima: “O coração tem razões que a razão desconhece.” O espírito de finesse funda-se no coração. O seu olhar é aquele que sonda não com os olhos da carne, mas com os olhos da alma e do coração. Por isso, é capaz de ver sem precisar de olhar; é capaz de intuir, de pressentir, de avaliar o seu objeto num único relance, mas de um modo empático e integral. E realiza isto sem passar pelo raciocínio discursivo. Assim, não se estranhe que Pascal descreva também o coração como o órgão da fé, que o filósofo explica com esta fórmula: a fé ocorre quando Deus é sensível ao coração e não necessariamente à razão.

 

A filosofia e espiritualidade a Oriente continuam a valorizar a centralidade do coração como alicerce da vida, coisa que o nosso racionalismo ocidental resiste a admitir. Predominam na espiritualidade oriental expressões como “cuidado do coração”, “vigilância do coração”, “oração do coração”. Se o coração está no centro da pessoa humana, é por meio dele que entramos numa relação justa com tudo aquilo que existe. Mas de que lado está o coração?

 

[SEMANÁRIO#2400]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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