COMO SE VÍSSEMOS O INVISÍVEL

Crónicas 15 outubro 2018  •  Tempo de Leitura: 5

Há uma passagem do saltério bíblico que diz: “Bendito seja o Senhor, meu rochedo. Ele prepara as minhas mãos para a luta e inicia os meus dedos na arte do combate.” De que luta se fala? Certamente daquela interior, do combate espiritual, que pode ser tão violento e arriscado como uma encarniçada batalha. Porém, não há fé que em algum momento do seu percurso não se reconheça assim. Um ensaio famoso de Miguel de Unamuno, intitulado “A agonia do cristianismo”, mostra o sentido duplo que tem o termo “agonia”: por um lado, está ligado à paixão e à morte, mas, por outro, evoca o combate, o jogo e o desafio que a construção da vida representa. E a crença é isso: um movimento agónico, um confronto, um entusiasmo árduo e inacabado.

 

Ora, a luta é, antes de tudo, com o próprio Deus. Ou melhor, com o silêncio de Deus. Aquela palavra do Evangelho de São João, “a Deus nunca ninguém O viu” (1 Jo 4,12), trazemo-la como uma ferida. Nenhum de nós viu a Deus. E, contudo, ele fornece um horizonte e uma experiência de sentido à vida. Este paradoxo, constituindo uma fonte de esperança, não deixa de ser um espinho. A maior parte do tempo, experimentamos o desencontro de Deus, o seu extenso silêncio. Santo Agostinho conta isso num dos capítulos das Confissões: “Perguntei à terra e ela disse-me: ‘eu não sou’ — e tudo que nela existe respondeu-me o mesmo. Interroguei o mar, os abismos, os répteis animados e vivos e responderam-me: ‘não somos o teu Deus, busca-o acima de nós’. Perguntei aos ventos que sopram, e o ar com os seus habitantes respondeu-me: ‘Anaxímenes está enganado, eu não sou o teu Deus’. Interroguei o céu, o sol, a lua, as estrelas e disseram-me: ‘nós também não somos o Deus que procuras’. Disse então a todos os seres que rodeiam as portas da carne: ‘já que não sois o meu Deus falai-me do meu Deus, dizei-me ao menos alguma coisa dele’.”

 

Esta é a condição peregrinante da fé. Buscamos a Deus sem o ver, escutamos a sua voz sem verdadeiramente o ouvir. Tateamos o seu rosto no vazio e no silêncio. E, contudo, esses lugares de ausência são espaços que misteriosamente insinuam uma presença. No filme “Nostalgia”, de Andrei Tarkovski, há uma cena onde se vê uma multidão que se move de um sítio para o outro, numa demanda sem resolução. Ouve-se então uma voz que irrompe como um grito: “Mas diz alguma coisa Senhor; diz-lhes uma palavra; andam à procura, não vês que têm desejo de ti?” A voz de Deus faz-se ouvir com esta resposta: “E se eu disser uma palavra, achas que poderão entender?”

 

Somos atravessados pela possibilidade de Deus, pela sua interminável interrogação. Apenas isso podemos dizer. Quanto ao mais, os crentes têm de ser humildes. Na Primeira Carta aos Coríntios, São Paulo diz: “Somos a escória, o lixo do Mundo” (1 Cor 4,10), isto é, somos os ínfimos, aquilo que não vale. E, de facto, a experiência crente não é uma experiência creditada. Nenhum tribunal natural ou da razão pode creditar, de forma definitiva, esta experiência. Ela vive unicamente assegurada por uma desmesurada confiança. Nesse sentido, a fé tem a forma de uma hipótese. Caminhamos às apalpadelas, como se víssemos o invisível, segundo a bela formulação da Carta aos Hebreus (Heb 11,7). A fé expõe-nos desassombradamente à contemplação, ao silêncio, às idas e vindas sem entender nada, ao fazer e ao refazer. A dúvida e a dificuldade de crer não descaracterizam a fé. Pelo contrário, são um seu elemento fundamental. Mas lutando com Deus, também dançamos com ele.

 

[©semanario2397]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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