A FELICIDADE QUE NÃO EXISTE

Crónicas 29 setembro 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Por irónico que possa parecer, a ideologia da felicidade — que hoje contamina todos os planos da vida e da sua representação — tem disseminado de modo maciço a frustração, a tristeza e a infelicidade. Tornamo-nos mais infelizes a partir do momento em que erguemos a felicidade como idealização que absorve o nosso imaginário e ainda não percebemos até que ponto esse conceito abstrato se tornou uma armadilha que nos aprisiona no seu inverso. Numa sociedade que faz da apologia da felicidade a todo o custo o seu credo, todos nos sentimos culpados ou defraudados, incapazes de perceber que estado seja esse e como realmente se obtém. Basta olhar para as definições de felicidade: as únicas com sentido são as que escapam sabiamente a todo o esquematismo. Como aquela onde se pergunta: “Como explicarias a felicidade a um miúdo?” E se ouve como resposta: “Eu jamais explicaria. Passava-lhe, antes, uma bola para os pés.” Em vez de felicidade deveríamos falar mais de alegria. A alegria tem raízes no quotidiano; mesmo quando nos surpreende, emerge de um itinerário existencial que podemos reconstruir; sabemos o que seja e como se alcança. Deveríamos falar mais de leveza, essa qualidade dos que permitem à vida manter um élan, uma espécie de transparência e gratidão, ligados não ao que a vida foi ou ao que poderia ter sido, mas ao indizível milagre que ela, a cada instante, é. Deveríamos falar de simplicidade, essa capacidade de partir continuamente do essencial, fazendo disso uma escolha, uma prática e um estilo. E falar daquelas pequenas esperanças, disso que recebemos e damos estabelecendo desse modo o movimento circular da vida, e que depois se torna o guia e o espelho das nossas aspirações maiores. Falar de coisas finalmente concretas, ao alcance da mão, coisas talvez triviais, mas que vêm sem mais brincar aos nossos pés. O que nos faz felizes tem de ser uma experiência infinitamente mais humilde do que o standard fantasioso requerido pela ideologia da felicidade.

 

Hoje ouve-se muitos pais dizerem acerca dos filhos e do seu futuro: “Não quero influenciar o rumo que o meu filho vai seguir; a escolha está completamente nas suas mãos; desejo apenas que ele seja feliz.” E ao dizer isto, os pais não se dão conta do problema que estão a criar para os filhos. O amor, na verdade, não é desejar que alguém seja feliz, e ainda menos que seja apenas feliz. Como ensina Santo Agostinho, o amor é antes um volo ut sis, “quero que tu sejas”. Mais do que os estados que se atravessa e do que as estações que experimentamos está o que somos. A arte de ser deve prevalecer para lá das horas solares ou noturnas, dos processos de florescimento ou de impasse, da dança descendente da penumbra ou do desenho aéreo do júbilo. Não podemos desejar que alguém seja apenas feliz. Isso equivale a coartar a vida e a fantasiá-la perigosamente. Cabe-nos estimular os que amamos à corajosa aceitação da vida, no que ela tem de plenitude, mas também de vazio e até de deceção. Pois a quanta sabedoria só acedemos por essa ponte de corda que nos aparece suspensa sobre o abismo e pela qual caminhamos de olhos vendados e trémulos. Lembro-me muitas vezes de uma passagem de um poema de Giuseppe Ungaretti que diz: “Jamais, jamais sabereis quanto me ilumina/ a sombra que vem, tímida, colocar-se a meu lado/ quando desisto de esperar.” Nem sempre a sombra é o contrário da luz, como a árdua fadiga de viver não é o contrário da felicidade. São etapas do mesmo rio que corre. Há lágrimas que nos consolam tanto ou mais do que muitos sorrisos. E há dores que nos introduzem numa experiência de gestação e de comunhão, que não julgaríamos possível.

 

SEMANÁRIO#2394]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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