A Igreja às portas do inferno

Crónicas 8 setembro 2018  •  Tempo de Leitura: 9

Jesus Cristo, quando instituiu a sua Igreja, prometeu que “as portas do inferno” não prevaleceriam contra ela (Mt 16, 18). Mas, às vezes, essas portas entreabrem-se e, como em tempos disse o beato Paulo VI, o fumo de Satanás infiltra-se na Igreja.

 

Em relação ao escândalo da pedofilia, dois extremos devem ser evitados: aceitar acriticamente que todos os sacerdotes, bispos e cardeais são culpados, ou potenciais pedófilos, ou, pelo contrário, desvalorizar a situação, reduzindo-a a uma mera chicana político-eclesiástica, como se mais não fosse do que uma confrontação entre facções eclesiais rivais. É verdade que nem tudo está mal, mas também é certo que não está tudo bem: há, efectivamente, algo de podre no reino de Cristo neste mundo, que é a sua Igreja.

 

Sobre este particular, foi muito esclarecedora a entrevista concedida por Robert Barron, bispo auxiliar de Los Angeles, no próprio dia do seu regresso da Irlanda, onde acompanhou o Papa Francisco no encontro mundial das famílias. Este bispo norte-americano não só se pronunciou sobre o caso McCarrick, entretanto demitido do colégio cardinalício, como também sobre a polémica carta do arcebispo Carlo Maria Viganò, que foi núncio nos Estados Unidos da América e que denunciou o suposto encobrimento do caso do ex-cardeal de Washington por alguns bispos, propondo, num excesso certamente condenável, a renúncia de Francisco ao ministério petrino.

 

O bispo auxiliar de Los Angeles não teve inconveniente em considerar a actual crise do catolicismo norte-americano como a maior de toda a sua multisecular história. Não apenas pelos terríveis crimes cometidos, mas também pelo facto desses abusos terem sido realizados por pessoas consagradas a Deus, que se serviram do poder e autoridade decorrentes das suas funções sagradas para cometerem esses actos abjectos.

 

O clericalismo é, como denunciou o Papa Francisco, uma das principais causas desta grave crise eclesial, que Robert Barron atribui sobretudo à infidelidade. Por isso, a solução é uma renovada fidelidade de todos os cristãos – bispos, padres, religiosos e leigos – a Cristo e à sua Igreja. Esta urgente renovação espiritual – a reforma eclesial mais urgente – exige, como é óbvio, a oração, a prática frequente da confissão e da sagrada comunhão, a penitência e a devoção a Nossa Senhora, aos anjos e santos. Como disse Cristo e o Papa Francisco recordou na sua recente carta, “esta espécie de demónios não se expulsa senão à força de oração e de jejum” (Mt 17, 21; Mc 9, 29).

 

Seria certamente injusto, segundo o bispo auxiliar de Los Angeles, considerar a homossexualidade como a causa principal do escândalo, mas também não se pode ignorar que uma percentagem significativa dos abusos por clérigos foram cometidos em pessoas do mesmo sexo. Sentir essa atracção não é, em si mesmo, condenável: na Igreja católica, para além de muitos fiéis heterossexuais, também há homossexuais que, segundo o seu próprio estado e condição, honram o compromisso da castidade, a que todos os fiéis católicos, sem excepção, estão obrigados, em virtude do sexto e nono mandamentos da Lei de Deus, que interditam os actos, desejos e pensamentos impuros.

 

Quem não está apto para viver a virtude cristã da castidade no estado matrimonial, não pode ser admitido ao sacramento do casamento cristão. Quem não consiga viver a continência perfeita, ou seja a abstenção de todos os actos de natureza sexual, não lhe pode ser ministrado o sacramento da ordem sacerdotal. Todos os cristãos estão, por igual, chamados à santidade, mas cada qual segundo a sua própria vocação. À Igreja compete discernir as diversas vocações cristãs e só admitir ao sagrado matrimónio, ou às sagradas ordens, os fiéis que sejam idóneos para o estado correspondente.

 

A infidelidade consciente e voluntária dos católicos, quer sejam leigos ou ministros sagrados, não pode ser consentida, nem tolerada. Durante décadas, foi da praxe eclesiástica negligenciar estes casos, que se entendiam do foro íntimo das almas e não do âmbito e competência da governação eclesial. Mas a louvável misericórdia para com os pecadores, sendo estes predadores sexuais, não pode ser feita à custa das vítimas, pois uma tal atitude favorece a prática destes crimes e a sua impunidade. E, os milhões gastos em milionárias indemnizações, são fundos desviados dos mais pobres e necessitados.

 

Embora descartando, como obviamente excessiva e injusta, a demissão de todo o episcopado norte-americano, o bispo Robert Barron não enjeita a necessidade de uma maior vigilância na Igreja católica. Em relação aos bispos, é ao Vaticano que cabe essa missão, dada a estrutura hierárquica da instituição: só o Papa é superior a um bispo. Não obstante os esforços realizados nesse sentido por São João Paulo II, Bento XVI e Francisco, os recentes escândalos em relação à nomeação e acção de bispos, nomeadamente no Chile e nos Estados Unidos da América, provaram a sua insuficiência: são precisos mais e melhores instrumentos de escrutínio da acção pastoral dos bispos.

 

Em relação aos padres de que constem comportamentos contrários à moral católica, não é de descartar a existência de comissões, formadas também por leigos especialmente idóneos, que investiguem tais casos, não apenas para a correcção dos prevaricadores e defesa das eventuais vítimas, mas também para evitar que actos dessa natureza se possam repetir. Os leigos não são meros destinatários da acção da Igreja, como algum clericalismo pré-conciliar ainda defende, mas protagonistas da sua missão evangelizadora, na medida em que a consagração baptismal lhes confere a dignidade de sacerdotes, profetas e reis. Têm, portanto, direito a exigir que os seus ministros sejam coerentes com o compromisso que liberrimamente assumiram.

 

Não há dúvidas de que esta gravíssima crise se inscreve na luta apocalíptica entre o bem e o mal, ou seja, entre a Igreja e o demónio. Se Deus se serve de causas segundas, como são todos os sacerdotes e leigos santos, para a realização do bem, o diabo, tal como usou Judas Iscariotes, serve-se dos pecadores para dividir e destruir a Igreja. Porque afecta a credibilidade da instituição eclesial, este escândalo é, segundo o bispo Robert Barron, uma verdadeira obra-prima de Satanás.

 

A solução só pode ser uma: Jesus de Nazaré, o único nome em que podemos alcançar a redenção. É a fé e o amor a Cristo a razão da doutrina e da moral cristã. Quando muitos discípulos abandonaram Jesus, ele perguntou aos doze se também eles o queriam deixar. Pedro disse: A quem iremos, Senhor, se só tu tens palavras de vida eterna?! (Jo 6, 67-69). Cristo é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6): só a verdade, mesmo dolorosa, liberta (Jo 8, 32).

 

Deus quer servir-se deste escândalo para purificar a sua Igreja. A vergonha e humilhação desta provação é a penitência devida por estes horríveis pecados. Só depois de expiadas estas gravíssimas culpas, a Igreja, purificada, poderá reabilitar-se aos olhos da humanidade. Só em Cristo e na sua Igreja o mundo pode encontrar a salvação (Jo 4, 42).

Artigos publicados no site ©Observador e ©Voz da Verdade.

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