A arte esquecida da paciência.

Crónicas 1 agosto 2018  •  Tempo de Leitura: 4

De repente, damos por nós a lidar mal com o inacabado e o "em bruto" da vida, com a gestão e os seus tempos assimétricos, com os avanços e os recuos necessários à aprendizagem. Tratamos a vida com a mesma ansiedade que se abate sobre nós nos cinzentos corredores de espera, nas filas administrativas, nos engarrafamentos do trânsito. Tornámo-nos viciados em assuntos rapidamente fechados.

 

De repente, damos por nós a saber apenas medir o tempo pelo relógio e a pensar que não remos tempo para perder. O tempo do relógio é regulado por uma máquina. É neutral, isento e uniforme, corre inalterável, dirige-se sempre para diante, indiferente às ingerências do presente ou ao que fica para trás. O tempo do relógio é desempilhado e contínuo, capaz de afirmar, a qualquer preço, a sua progressividade. É um tempo sem vínculos, sem sentimentos que atrasam, sem raízes que matutam para além do tempo. O tempo do relógio não é exatamente um tempo humano. E, contudo, fizemos do seu triunfo uma espécie de interdito civilizacional. Eu diria que o exercício da paciência começa pela aceitação esperançosa da vida. Ela coloca-nos face a face com a vulnerabilidade, aquela própria e a dos outros. Provavelmente ainda nos sentimos distantes das nossas metas, não gostamos de tudo o que encontramos em nós e à nossa volta, percebemos que há um trabalho de transformação que deve prosseguir ou deve mesmo ser intensificado. Não se deve confundir paciência com indecisão, passividade, escassa coragem. Pelo contrário: é a audácia de não deixar-se instrumentalizar pela precipitação ou bloquear pelo temor, investindo ativamente o nosso tempo na gestão das expressões complexas e inesperadas da vida, mas fazendo-o com sabedoria, serenidade e atitudes construtiva. Gosto mito do modo como São Tomás de Aquino explica a paciência. Diz ele: a paciência é a capacidade de não desesperar.

 

O agricultor não escava desesperado a terra atrás a semente que ali deixou, mas aparta-se dela sabendo que há um tempo necessário de separação para que a semente, ao seu ritmo, possa florir. O pecador não abandona para sempre o mar só porque nesse dia não conseguiu apanhar peixe algum. Ele sabe que há só uma coisa a fazer: voltar no dia seguinte. A paciência é atenção à singularidade e à oportunidade de cada tempo, plenamente conscientes de que a existência se constrói com materiais muito diversos: peças de proveniência diversa, memórias heterogéneas, fragmentos disto e daquilo, caligrafias inequívocas, pegadas que prosseguem lado a lado mas visualmente desiguais, e por aí fora. A nossa unidade pessoal e a nossa comunhão com os outros só se realiza no encontro inesperado do diverso. Por uma via demorada de escuta, de disponibilidade, de afetivo reconhecimento, da negociação e, por fim, de encontro. A maior parte do tempo habitamos o inacabado. A paciência, se quisermos, é a arte de acolhê-lo e de partir dai para um trabalho incessante de ressignificação (que é, como sabemos, em grande medida, um trabalho de reconciliação).

 

O escritor italiano Giacomo Leopardi lembrou, que "a paciência é a mais heróica das virtudes, precisamente por não possuir aparentemente nada de heróico". E é também um traço de humor que vejo no facto do termo grego para paciência, makrothymia, descrever fundamentalmente um modo de respirar. A paciência é respiração longa, distendida e aberta. O contrario do nosso respirar ofegante e férreo. Talvez que tudo o que tenhamos a faz seja isso: respirar melhor.

 

[©José Tolentino Mendonça, Revista Expresso, 15/06/13 | Ilustração: ©Paula Xavier Fernandes]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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