O Bom Pastor – Parte III

Crónicas 28 junho 2018  •  Tempo de Leitura: 7

«O Senhor é meu pastor, nada me falta» (Slm 23,1). A expressão bíblica não só condensa a importância do autêntico pastor, como também é portadora de uma promessa. Deus promete e compromete-se a cuidar do povo de Israel, conduzindo-o à felicidade e vida plena. E quando Ele cumpre o que promete, concretiza-o sempre em forma de gente e por excesso. Em forma de gente, pois Jesus é o cumprimento dessa promessa. Por excesso, porque o amor fiel que Deus jura a Israel torna-se universal, dilatando-se a toda a humanidade.

 

Jesus é o bom pastor (Jo 10,11). Ou, melhor dizendo, o «belo pastor» (ho poimèn ho kalós), tradução literal do grego original do evangelho. Com efeito, Jesus é ‘bom e belo’. Este binómio semântico não só representa o ideal grego da pessoa humana que harmoniza o estético e o ético, mas também identifica o descendente de David e Messias prometido a Israel. David era «era loiro, de belos olhos e de aparência formosa» (1 Sm 16,12), por isso sempre lhe foi atribuído o cognome de ‘belo’, o belo (bom) pastor. E à semelhança de David, que jamais achara predileção aos olhos do seu pai Jessé, Jesus, um simples carpinteiro da Galileia dos gentios, também foi rejeitado, morto e crucificado. Como diz João: «veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (Jo 1,11). Mas, pela ressurreição, Deus o confirmou Messias, e por isso, «a pedra que os construtores veio a tornar-se pedra angular» (Slm 118,22// Mt 21,42).

 

Como uma amiga bem me lembrou, Jesus sofreu na carne a rejeição. Exilado do rebanho de Israel, tornou-se ‘ovelha perdida’. Porém, resgatado pelo Pai. Ele mesmo experimentou o drama de estar perdido e ser encontrado! E, melhor do que ninguém, procurou incessantemente «as ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mt 10,6), sentando-se à mesa com os «pecadores e publicanos» (Mt 9,11), dando afeto aos marginais e rejeitados, consolando os aflitos, enxugando as lágrimas a quantos tinham abandonado a esperança. Por isso Deus o constituiu o único pastor, por excelência. O cuidado e o zelo do Pai por cada um dos seus filhos, habita em plenitude no coração de Jesus.

 

Mas, enquanto qualquer camponês do século primeiro conhece perfeitamente o significado de ser pastor, nós, cidadãos cosmopolitas do século vinte e um, quase o ignoramos por completo. Por essa razão, insisti em investigar o que faz realmente um pastor. E eis o que passo a partilhar:

 

Até há cerca de 50 anos – e ainda hoje nalgumas aldeias remotas – o pastor vive permanentemente com as suas ovelhas. Ser pastor não é uma profissão, mas uma entrega. Não admira, portanto, que na maior parte das vezes seja solitário. Como refere o Bispo Dom António Couto, numa das suas homilias: «Ele é o companheiro para quem as horas do seu rebanho são também as suas, corre os mesmos riscos, a mesma fome e a mesma sede, o sol que cai sobre o rebanho cai também sobre ele.» E como testemunhava um certo pastor numa entrevista à RTP: «Isto tem que se fazer com amor, senão não se faz».

 

A manhã de um pastor começa de madrugada, bem cedo, entre as quatro e cinco da manhã, quando sai com o rebanho para procurar pastagens, ou reuni-lo primeiro no curral com as crias. Geralmente a jornada termina somente entre as sete e nove da noite, consoante a época do ano. É um trabalho diário, sem feriados, domingos ou férias. Por isso, devido ao contacto permanente com o rebanho, há até muitos pastores que, por vezes, dormem junto dele. Em Israel, no séc. I, era uma prática comum, sobretudo no inverno, quando o pasto escasseava e só se achava em zonas bastante remotas, muito longe do curral. Certas vezes, o pastor encontrava uma caverna, noutras dormia ao relento, na beira do caminho, ou no local do pasto. Era-lhe indiferente, desde que vigiasse o rebanho pela noite dentro.

 

Outro pormenor fascinante é o modo de uso do cajado (báculo). Enquanto a vara protege as ovelhas dos predadores – uma espécie de pau grosso, resistente, usado como arma contra lobos, chacais ou hienas –, o cajado é um pau curvado na ponta, para erguer as ovelhas que se precipitaram nalgum buraco, ou apanhadas pela correnteza de um rio, realizando o efeito de gancho sob o peito do animal. Seja como for, nem o báculo, nem a vara são jamais usados para agredir o rebanho. Pelo contrário, constituem instrumentos de defesa.

 

O pastor também é parteiro. Assiste o nascimento dos borregos, carregando os recém-nascidos ao colo durante dias a fio, vigiando-os e cuidando de cada um de forma redobrada até à maturidade. Por isso, conhece o seu rebanho, e cada ovelha, como ninguém. Identifica as mais robustas, as frágeis, as sãs, as que estão feridas ou doentes, as mansas, ou as mais rebeldes, as astutas e aquelas que, simplesmente, seguem sempre a sua voz ou os sinais do seu cajado.

 

Para quebrar a solidão, geralmente fala para as ovelhas, como se tratassem de alguém. Quando alguma se extravia, conhece-a tão bem que, mesmo não a vendo, encontra-a pelo som, pois reconhece-lhe o balido distintivo. E a cada uma atribui um nome, chamando-as constantemente. A voz do pastor é vital para a ovelha, uma referência sempre tranquilizante quando se escutam por perto os uivos de lobos ou outros predadores. Não fosse a voz do pastor, o rebanho desfazia-se ao mínimo sinal de perigo ou desorientação. Por isso reconhecem a voz do seu pastor, e mais ninguém.

 

E agora sim! Agora é tão delicioso, ‘belo e bom’ saborear as palavras de Jesus a partir do evangelho de João:

 

«Depois de tirar todas as que são suas, vai à frente delas,

e as ovelhas seguem-no, porque reconhecem a sua voz.

Mas, a um estranho, jamais o seguiriam;

pelo contrário, fugiriam dele, porque não reconhecem a voz dos estranhos.(…)

Eu sou o bom (belo) pastor.

O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.

(…) Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me,

tal e qual como o Pai me conhece e Eu conheço o Pai;

e dou a minha vida pelas minhas ovelhas.»(Jo 10, 4-15)

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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