O Bom Pastor – Parte II

Crónicas 21 junho 2018  •  Tempo de Leitura: 6

Há figuras bíblicas incontornáveis na história de Israel. De entre elas podemos destacar o primeiro Patriarca e o primeiro Rei que uniu as doze tribos e converteu um povo dividido numa nação. Falamos de Moisés e David, respetivamente. Embora separados por cerca de trezentos anos de história, algo os aproxima, além do facto óbvio de pertencerem ao povo escolhido: ambos eram pastores.


Moisés, depois de fugir do Egito (Ex 2,15) refugia-se em Madian onde conhece o sacerdote Jetro (vs.16-20). Decide morar com ele e aceita casar com a sua filha, dedicando-se a apascentar o rebanho do sogro (v.21). Numa das ocasiões que pastoreava perto do monte Horeb, Deus revelou-se a Moisés, incumbindo-o de uma missão: «agora, vai; Eu te envio ao faraó, e faz sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel» (Ex 3,10). Penso haver aqui um detalhe facilmente ignorado, mas a meu ver, fundamental: Deus só elege Moisés durante a sua experiência pastoril – não no seu nascimento, não pela sua pertença à corte egípcia ou nem até pela sua descendência. Somente enquanto pastor, Moisés torna-se apto para a missão.

 

A sua vara, outrora usada para guiar e proteger o rebanho de Jetro, é convertida agora no ceptro do poder libertador de Deus que faz prodígios (Ex 4,17), desafia a autoridade do faraó – o mais poderoso líder do mundo conhecido naquele tempo –, enfrenta a magia dos sacerdotes egípcios (Ex 7, 11-12) e separa as águas do mar (Ex 14,21) para conduzir o povo à liberdade. E no decurso de todos estes feitos épicos, Moisés conserva o semblante de pastor que defende o rebanho dos lobos e o conduz a pastagens férteis, mais propriamente, à Terra prometida onde «mana leite e mel» (Ex 3,17). Deus escolheu um líder com um coração semelhante ao Seu…

 

Entretanto decorrem os séculos, e na Terra prometida Saúl revela-se um rei indigno. Deus ordena então ao profeta Samuel: «Quero enviar-te a Jessé de Belém, pois escolhi um rei entre os seus filhos» (1 Sm 16, 1). Chegado a Belém, Samuel encontra Jessé com os seus sete filhos, e repara em Eliab, o primogénito. Mas Deus adverte: «que não te impressione o seu belo aspeto nem a sua alta estatura, pois Eu rejeitei-o. O que o homem vê não importa; o homem vê as aparências, mas o Senhor perscruta o coração» (v.7). E assim, sucessivamente, Samuel inspeciona todos os filhos trazidos por Jessé, até dar conta que ali não se encontrava o eleito de Deus. Pergunta a Jessé: «Estão aqui todos os teus filhos?». Jessé retorquiu: «Resta ainda o mais novo, que anda a apascentar ovelhas» (v11). Seu nome era David.

 

Abro um breve parêntesis na narrativa. Encontramo-nos diante de algo intrigante na simbologia bíblica. Sete é o número da plenitude. Sete filhos representam a máxima benção para um pai. Mais do que isso é uma redundância, não conta. Se David é o oitavo filho, pela tradição judaica deve ser irrelevante, rejeitado de qualquer posição de interesse ou relevo. Por isso, Jessé nem se dignou a convocá-lo. Foi necessária a ordem de Samuel para Jessé chamar David. E assim que o menino entra em casa, Deus diz a Samuel: «Ei-lo, unge-o, é esse.» (v.12).

 

Com uma ironia tão típica na Bíblia, o autor do texto habilmente mostra-nos que David é como a “ovelha perdida” de Jessé. Mas é “essa” que Deus nomeia pastor, capacitado também para reunir outras ovelhas dispersas…

 

Os reis dos povos antigos eram descendentes de tiranos, guerreiros, assassinos e conquistadores. Muitos ascendiam ao reinado com recurso à violência. Respeitados acima de tudo pelo temor que projetavam. Mas Deus escolhera outro tipo de rei: com a alma e o coração de um pastor! Ele não quis inspirar medo no seu povo, mas um modelo de serviço e entrega. David estava pronto a reinar segundo o desígnio de Deus porque só um pastor se prontificaria a cuidar do povo, de cada israelita, como um rebanho por quem entrega a sua vida.

 

David, zeloso do seu povo, oferece-se para enfrentar Golias, o possante paladino do exército filisteu que se mobilizara para conquistar Israel. Na frente de batalha, o ainda regente Saúl confronta David, estupefacto: «Não poderás ir lutar contra esse filisteu. Não passas de um miúdo, e ele é um homem de guerra desde a sua mocidade» (1 Sm 17,33). David respondeu: «quando o teu servo apascentava as ovelhas de seu pai e vinha um leão ou um urso roubar uma ovelha do rebanho, eu perseguia-o e matava-o, arrancando-lhe a ovelha da boca. E se ele se levantava contra mim, agarrava-o pela goela e estrangulava-o» (vs.34,35).

 

Eis a justificação de David. Está pronto a combater porque tem a experiência de pastor! Porque deseja ardentemente defender o seu povo e resgatá-lo das presas do inimigo. Deus não precisa de reis guerreiros, mas de pastores com ousadia e amor pelo seu rebanho. E assim, o pequeno pastor David derrotou o guerreiro Golias, armado apenas com a sua vara, cinco pedras lisas de um regato guardadas no seu alforge e uma funda (cf. vs. 40-51).

 

Foi este menino que Deus ungiu rei de Israel. Trouxe prosperidade e reuniu as tribos dispersas como um rebanho, numa só nação. Da descendência deste rei-pastor Deus prometeu suscitar um Messias, o derradeiro libertador e pastor da humanidade.

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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