O Bom Pastor – Parte I

Crónicas 14 junho 2018  •  Tempo de Leitura: 8

Hoje decidi escrever a primeira parte de uma crónica tripartida. A razão que me leva a fazê-lo deve-se ao desafio que uma amiga me interpelou, ainda que involuntariamente. Ao ler a minha última crónica questionou a imagem de Deus como pastor. Naturalmente perguntei-lhe porquê. Ela respondeu-me mais ou menos assim: «Um pastor guarda ovelhas para encaminhá-las depois ao matadouro e servirem de alimento».

 

Muito interessante. Nunca me tinha ocorrido esse conceito. Mas imediatamente refleti que pode ter passado pela cabeça de muita gente. E isso é algo que, de modo nenhum, pretendo deixar passar em branco…

 

Em primeiro lugar, sempre que a Bíblia fala de Deus recorre a comparações e analogias. As mais frequentes são antropomorfismos; isto é, Deus é comparável a uma pessoa humana, seja, por exemplo, uma mãe (Is 49,15), um pai (Dt 14,1s), um marido traído que permanece fiel à esposa, por amor (Os 2, 16-17), etc. Obviamente, nenhuma comparação deve ser amplamente interpretada de acordo com o sentido literal. Tratam-se de representações que captam uma determinada experiência humana, revelando uma característica peculiar da relação de Deus connosco. Além do mais o povo de Israel sempre afirmou categoricamente que era proibido construir imagens de Deus (Ex 25,18). Era essencial preservar a fé no Deus único, enquanto proliferavam tantas religiões politeístas oriundas dos povos vizinhos. Sabiam bem demais que, para permanecerem na Aliança de Moisés, deviam rejeitar qualquer forma de idolatria.

 

Na verdade, nenhuma comparação ou analogia pode esgotar o grandioso Mistério de Deus. Mesmo Jesus quando fala de d’Ele como Abbá(Pai) não deixa de o fazer pela via analógica. Por isso, apesar de Deus agir como um pai cheio de bondade, a sua transcendência é preservada. O nome em si não nos dá azo para dele retirarmos as consequências de todas as experiências – sobretudo as negativas – que temos de qualquer pai. Apenas única e exclusivamente a melhor experiência humana, semelhante à que Jesus faz de Deus. Do mesmo modo devemos encarar a representação de Deus como pastor. Uma analogia muito acessível ao povo de Israel, essencialmente um povo de agricultores e pastores.

 

Agora, em segundo lugar, convém contextualizar o uso bíblico da figura do pastor. Os israelitas jamais comparam Deus a qualquer pastor. Deus é o Bom Pastor! Aquele que vive em função das suas ovelhas, não o contrário. Um mau pastor preda o seu próprio rebanho. Não passa de um mercenário que rejeita qualquer vínculo com as ovelhas.

 

Por outro lado, o pastor exemplar só vende a lã e o leite das ovelhas – não a sua carne, porque a afeição que nutre por elas não lho permite. Elas não se reduzem a um ganha-pão, mas constituem a sua vida. O profeta Ezequiel ilustra na perfeição essa dicotomia entre o mau e o verdadeiro Pastor que é Yahvé:

 

«Ai dos pastores de Israel, que se apascentam a si mesmos! (…) matastes as rezes mais gordas e não apascentastes as ovelhas. Não tratastes das que eram fracas, não cuidastes da que estava doente, não curastes a que estava ferida; não reconduzistes a transviada; não procurastes a que se tinha perdido; mas a todas tratastes com violência e dureza. (…) Vou tirar as minhas ovelhas das suas mãos (…). Da sua boca arrancarei as minhas ovelhas, e elas nunca mais serão uma presa para eles.’ (…) Sou Eu que apascentarei as minhas ovelhas, sou Eu quem as fará descansar (…). Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça.» (Ez 34, 2-15)

 

A parábola da ovelha perdida começa nestes termos: «Qual é o homem dentre vós que, possuindo cem ovelhas…» (Lc 15,4). São, de facto, muitas. Demais, até, para um pastor comum. Com efeito, trata-se nitidamente de um proprietário rico. E nenhum ocuparia tempo a guardar rebanhos. Trataria antes de contratar assalariados para o fazer. Por isso a parábola começa com este facto insólito.

 

Se prestarmos atenção aos evangelhos há várias parábolas – senão a maior parte – em que Jesus sistematicamente apresenta como personagem central uma figura importante, com prestígio e posses: na parábola dos talentos há um senhor que confia bens aos seus servos (Mt 25, 14-30), à semelhança de um proprietário que tem servos e partilha com o filho pródigo os seus bens (Lc 15,11-32), ou de um homem rico que decide fazer um grande banquete (Lc 14, 15-24), ou do proprietário de uma vinha que contratou trabalhadores (Mt 20,1-16), ou de outro que foi traído pelos seus vinhateiros (Mc 12, 1-12), ou do rei que perdoou uma dívida ao seu servo (Mt 18, 23-25), ou ainda de um homem com meios para edificar uma torre (Lc 14,28).

 

Este padrão recorrente é sinal do desejo de Jesus preparar-nos para a vinda de Deus como Rei. Ele chega até nós como alguém com autoridade. Mas não a exerce com tirania ou prepotência. A forma como ela se desvela é que nos leva a descobrir a extraordinária bondade e beleza de Deus patente na parábola.

 

É comum as pessoas que detêm o poder e autoridade revelarem alguns “tiques” ou laivos de arrogância. Chamemos-lhe caprichos. É certo e sabido que qualquer pessoa abastada ou poderosa por vezes faz o que «lhe dá na real gana». Tendencialmente pensa, decide e age como quem está acima de qualquer instância – salvaguardando sempre algumas exceções. Porém, na maioria das vezes por motivos egoístas ou individuais, com pouca ou nenhuma consideração pelos seus subordinados.

 

Quantas vezes desejamos de quem pode e quem manda uma atitude mais firme em favor de quem mais precisa. Mas constatamos demasiadas vezes que aqueles que nos representam tornam-se inflexíveis com quem já é humilhado, enquanto caminham com pezinhos de lã diante dos privilegiados e poderosos.

 

Porém, este proprietário – que podemos assumir como figura do Deus Rei – é caprichoso de outro modo. A sua arrogância é totalmente inédita. Capricha em encontrar uma única e insignificante ovelha que perdeu, a qualquer custo, abandonando no deserto o resto do rebanho - símbolo do poder e dos seus interesses. Ora, em vez de nos confrontarmos com uma birra egocêntrica, deparamo-nos com a obstinação de colocar em primeiro lugar quem está perdido, o mais insignificante e abandonado.

 

Imaginemos um mundo governado e nivelado por alguém assim.

Alguém com autoridade para ser intransigente com o abandono dos mais frágeis.

Como ansiamos um Senhor do mundo com “manias” deste calibre!

Que mundo este, se Deus realmente reinar nele!

Como a vida floresce se Ele capricha desta forma…

Que Boa Notícia percebermos que Deus é Rei

e reina com o coração de pastor.  

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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