Instruções para fracassar melhor

Crónicas 15 maio 2018  •  Tempo de Leitura: 4

Mesmo quando à superfície as águas parecem fluir distendidas, nem é preciso descer a muitas braças de profundidade para dar-se conta que trazemos dentro de nós um medo oculto, em contínua combustão: o medo de falhar. Vem de muito longe esse medo. Vem de uma cultura que acha que o fracasso não serve para nada e não vê como ele possa contribuir para oferecer-nos também uma forma de conhecimento que seja válida. Vem de um moralismo — e não necessariamente religioso — que tenta por todos os meios encaixar a vida dentro de um esquema predefinido, sabendo apenas idealizar e punir, sem compreensão para as travessias, as incertezas e os processos que são a gramática necessária da maturação. Vem do receio de sermos julgados, expostos na nossa intrínseca vulnerabilidade, colocados de parte. Tudo isso torna-nos incapazes de lidar criativamente com o fracasso, de falar dele ou de integrá-lo de maneira saudável na construção daquilo que somos. Envergonhamo-nos dos nossos fracassos, vemos neles apenas humilhantes derrotas, quando ganharíamos em encará-los mais vezes como etapas necessárias de um processo e até como oportunidades para caminhos interiores que não tínhamos entrevisto. Porque há muitas coisas piores que o fracasso. E não raro uma delas é o que vem unanimemente considerado como êxito. A ironia não é só o que nos faz rir, mas também aquilo que nos faz chorar quando, a dada altura do caminho, percebemos o preço existencial que a idealização de uma vida bem sucedida nos obriga a pagar. Um alto preço traduzido em secura, fragmentação, sobre-esforço, exílio de si mesmo e representação estéril. Jean Lacroix, que escreveu um dos mais estimulantes tratados que conheço sobre o fracasso, não hesita em defender que ele é mais produtivo do que o êxito, porque nos obriga a realizar uma auscultação ampla e profunda da nossa própria vida e a conectarmo-nos a ela.

 

O fracasso pode ter muitos nomes. Mais importante do que os nomes, porém, é aprender a interpretar e a trabalhar o quinhão de fracasso que nos cabe viver

 

Por isso, repetir o provérbio latino errare humanum est pode parecer demasiado banal, mas pode ser também o ponto de partida para analisar, com a serenidade necessária, os nossos passos em falso, as nossas incertezas e dúvidas, e considerá-los fios indispensáveis do tecido da nossa existência. O fracasso pode ter muitos nomes. Podemos chamá-lo insucesso, falhanço, lacuna, erro, imperfeição. Mais importante do que os nomes, porém, é aprender a interpretar e a trabalhar o quinhão de fracasso que nos cabe viver. Admitir que o fracasso existe em nós faz-nos sofrer, e não pouco. Mas uma coisa que quem já viveu o suficiente sabe por experiência é que, quanto menos investimento fazemos em reconhecê-lo, mais o fracasso, em versão negativa, se infiltra, se agiganta e nos derruba. O processo paciente de discernimento em que temos de entrar (e que, certamente em muitas etapas, será um caminho impaciente e doloroso) não é eventual: mesmo quando fugimos dele por muito tempo, a sua necessidade impõe-se como condição do verdadeiro autoconhecimento. Charles Dickens escreveu que “cada fracasso ensina-nos algo que precisamos aprender”. O filósofo Ortega y Gasset, na mesma linha, colocava-o entre as categorias vitais da nossa experiência humana recorrendo à metáfora do nadador em dificuldade: “Naufragar não é afogar-se. O pobre humano, sentindo-se a submergir no abismo, agita os braços para manter-se à superfície. Esta agitação dos braços com que reage à possibilidade da sua perda... é já a salvação”. E, sobre o fracasso, há aquele imperativo do poema de Samuel Beckett, que merece ser recordado: “Tenta outra vez. Fracassa outra vez. Fracassa melhor.”

 

[Revista Expresso | 2376, 12 de maio de 2018]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail