Salmo de amizade

Crónicas 6 março 2018  •  Tempo de Leitura: 4

O padre Gonçalo Castro Fonseca sj. é um pilar cá de casa. Sem ele e sem os outros jesuítas que conheci no CUPAV nos últimos anos, dificilmente teria ingressado na Igreja. Teria continuado nas margens, teria ficado no alto da figueira de Zaqueu, teria permanecido no lado de lá da fronteira, sentindo-me um bastardo sem direito àquela pertença. Como soldados das fronteiras, os jesuítas, a começar no Gonçalo, deram-me a mão, fizeram-me descer da figueira, abriram-me uma porta onde estava uma parede. Não falo de fronteiras por acaso. Gonçalo está neste momento na grande fronteira, a Síria. Deu a alma ao manifesto, mergulhou na representação terrena do inferno: está no Serviço Jesuíta aos Refugiados em Damasco. No domingo passado, na missa, quando invocaram o seu nome, senti vergonha e orgulho. Senti orgulho da sua heroicidade. Senti vergonha, porque há meses e meses que não me lembrava dele.

 

Calculo que seja fácil cair no descontrolo emocional num cenário daqueles. No entanto, os textos que Gonçalo tem publicado no seu blogue (varekai) e no site dos jesuítas portugueses (pontosj.pt) revelam um homem calmo ou, pelo menos, um homem que faz um esforço para encontrar serenidade no inferno. Como se cria esperança na lava? Como estás? “Estou prudentemente corajoso ou corajosamente prudente”, é a resposta. É a serenidade que vem de Deus, que vem da certeza de que Ele está sempre entre nós mesmo quando deixamos de ouvi-Lo, mesmo quando deixamos de escutar o seu batimento cardíaco, que é o compasso do mundo, mesmo quando preferimos os tambores de guerra que trazemos cá dentro. “Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo”, canta o salmo e canta Gonçalo às duzentas crianças que acolhe todos os dias na casa de acolhimento que tem à sua responsabilidade numa zona periférica de Damasco. A respeito destas vítimas, Gonçalo confessou há dias uma dor inédita: dentro do possível, elas já se tinham habituado àquela nova normalidade, mas a última semana estilhaçou essa barreira protetora e o medo voltou. E o medo tem sempre expressões diferentes: há quem fuja, há quem procure refúgio, há quem fique paralisado, há quem grite e há quem consiga a tal serenidade.

 

Se a memória não me falha, Dante descreve um inferno cheio de homens bem definidos, concretos, com marcas individuais específicas. No paraíso, ao invés, as figuras perdem estas marcas específicas e humanas, são feixes de luz, quase abstrações. É uma metáfora do bem: elevarmo-nos no ar implica um esfumar da nossa individualidade em direção a um ponto universal que é partilhado por todos; somos diferentes no mal e no medo, mas só encontramos paz nessa única fonte de serenidade. É por isso que é fácil descrever a individualidade específica de um crápula enquanto que é muito difícil descrever um homem decente. Andei aqui horas à procura de uma descrição precisa do Gonçalo e não a encontrei. Aquilo que se pode dizer sobre ele é aquilo que se diz sobre a decência ou bondade, duas abstrações. Gonçalo é essa decência muito difícil de pôr em palavras, mas que é tão concreta e palpável como esta folha de papel.

 

Henrique Raposo]


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