O dia seguinte

Crónicas 27 dezembro 2017  •  Tempo de Leitura: 7

Ontem foi Natal e hoje começam os saldos e a contagem dos dias que faltam para o Ano Novo, acompanhados dos lendários propósitos, balanços e balancetes. Mais do mesmo, dirão alguns. Talvez sim ou talvez não. Entre os mil vídeos que se repetem e tornam virais nestes tempos de festa e celebrações, escolho um que, embora não seja novo, me parece interpelador por sublinhar a importância do dia seguinte. E dos que se seguem. De todos os dias do ano, quero dizer.

 

 

O vídeo circula nas redes sociais e whatsapp, e é apenas um pequeno filme que mistura cenas bíblicas com crianças louras e árvores de Natal em casas aquecidas ou a verem as luzes na rua, a olharem para as montras iluminadas e a coleccionarem presentes embrulhados em papel de cores festivas. Quando estamos prestes a apagá-lo por ser mais um entre tantos outros, eis que alguma coisa nos prende a atenção e nos faz vê-lo até ao fim. O vídeo é uma espécie de Evangelho de bolso que mostra o essencial da vida pública de Jesus, no seu tempo e também actualizado aos dias de hoje.

 

Em pouco mais de dois minutos vemos os gestos mais marcantes e resgatadores de Jesus e revemos os mesmos gestos, exactamente iguais, passados dois mil anos, protagonizados por homens e mulheres como nós. Estender a mão a quem se sentia excluído no tempo de Jesus é o mesmo que estender hoje a mão a alguém caído no chão ou em desânimo; abraçar um amigo ou um irmão vítima de maus tratos, abusos, preconceitos e rótulos que se colam à pele, é reproduzir os abraços acolhedores de Jesus, que sempre deu passos na direcção dos que ninguém abraçava, sem se importar com o que os outros diziam sobre si.

 

Curar cegueiras e dar vista aos cegos equivale, neste vídeo e nos tempos que correm, a criar meios alternativos para ajudar a ver e a ler a vida de outras formas e com outras linguagens, seja através de um alfabeto Braille ou usando telemóveis com aplicações que nos aproximam dos que amamos, mesmo quando estão a oceanos de distância, muito longe daquilo que a vista alcança.

 

Ensinar, como Jesus ensinava, nas ruas, no Templo ou em casa dos amigos, sentado entre eles, ao nível deles, é a mesma atitude que têm os professores que se fazem verdadeiros mestres por ensinar com paixão e sentido de missão, fazendo da sua vocação um verdadeiro sacerdócio (sabemos que todas as profissões exercidas com paixão e sentido de missão são isso mesmo: um sacerdócio).

 

Curar os enfermos e dar forças aos doentes no tempo de Jesus transpõe-se na perfeição para todos aqueles que hoje se dedicam a curar, tratar e acompanhar os mais frágeis, desde o início ao fim da vida, valorizando a sua existência e devolvendo-lhes muitas vezes a dignidade e o sentido de pertença. Cuidar dos que estão doentes, hoje como há dois mil anos, é ter muito presente o valor da vida e nunca desistir de se fazer próximo. Acima de tudo nunca baixar os braços dizendo que não há nada a fazer.

 

O vídeo prossegue no duplo registo flashback/fast forward decalcando imagens e gestos, atitudes e palavras que fizeram sentido no tempo de Jesus e continuarão a fazer sentido até ao fim dos tempos. Esta actualização pode não despertar todas as consciências nem tocar todos os corações, mas é forte e interpeladora. Não exige que tenhamos fé nem converte ateus ao catolicismo, mas mostra o que é ser cristão e fá-lo sem artificialismos. Sempre que alguém dentro ou fora da Igreja, próximo ou distante de qualquer religião, fé ou sistema de crenças, replica gestos comuns que todos reconhecemos e precisamos, sublinhando atitudes resgatadoras e radicalmente transformadoras, percebemos o que Jesus veio fazer à terra. E compreendemos melhor o que se passou ontem.

 

A superação raramente é um exercício solitário. Precisamos dos outros para encontrar em nós as forças que nos permitem ir mais longe, resistir e não desistir. Podem ser pessoas que amamos, podem ser entes queridos que já perdemos ou Alguém superior em quem acreditamos, mas necessitamos desse(s) outro(s) para não ficarmos à beira da estrada, minados de medos e tomados por paralisias.

 

Milagres como a multiplicação dos pães entendem-se melhor quando conhecemos pessoas e organizações que multiplicam modos de recolher alimentos para os distribuir por quem precisa. Perceber frases como “vocês são a luz do mundo” é possível quando realizamos que à nossa volta existe gente capaz de iluminar as sombras do mundo partilhando aquilo que têm, mas acima de tudo, partilhando aquilo que são. Ser luz no mundo também passa por acender no coração dos outros a certeza de que não estão sozinhos. E por alimentá-los com pão e água, quando é disso que mais precisam, mas também alimentando neles a esperança, a confiança, a capacidade de acreditarem e de se manterem de pé, verticais, num mundo devastado e devastador onde facilmente tropeçamos e ficamos caídos.

 

O vídeo pode ser apenas mais um vídeozinho de Natal, daqueles que ano após ano passam de mão em mão, através dos telemóveis, mas não nos deixa indiferentes porque fala no dia seguinte e convoca-nos para todos os dias do ano, em que somos chamados a viver com mais abertura de coração e mais capacidade de acolher os outros e, em especial, os que por serem diferentes muitas vezes julgamos e catalogamos. Quando, nós cristãos, falamos do Natal e celebramos o nascimento de Jesus não estamos só a invocar o que aconteceu há dois mil anos. Estamos a falar de um tempo novo no coração de cada um, hoje. De um nascimento que nos permite renascer também. À nossa maneira e nas circunstâncias de cada um, podemos replicar gestos, palavras e maneiras de ir ao encontro dos outros sem olhar a diferenças de credos ou raças. Como Jesus.

Artigos de opinião publicados no Observador

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