A ceia dos pobres

Vaticano 19 novembro 2017  •  Tempo de Leitura: 12

Quando, com a afirmação do cristianismo constantiniano [do imperador romano Constantino, a partir de 313], se começou a organizar a caridade, criando-se associações e espaços para hospedar as pessoas sem casa, um grande Padre da Igreja, para o qual os pobres eram verdadeiramente sacramento de Cristo, gritou numa pregação: «Não crieis estas “xenodocheía” (casas para os estrangeiros)! Com efeito, entregando a obra da hospitalidade a instituições particulares, os cristãos perderão o hábito de reservar uma cama na sua própria casa e ter o pão pronto para os pobres: as casas dos cristãos cessarão assim de ser casas cristãs!» (João Crisóstomo, cit. por Ivan Illich). Bem depressa se impõs este processo, dando copiosos frutos de caridade tanto no passado como hoje, e todavia esta exortação de João Crisóstomo deveria pelo menos interrogar-nos ou fazer-nos esperar pelo dia em que cada família cristã seja capaz de dar acolhimento e fazer sentar à sua mesa os pobres e os estrangeiros, sem pedir demasiado facilmente esta diaconia às instituições criadas pela Igreja.

 

O arguto Ivan Illich, verdadeiro mestre de cristianismo evangélico, nos anos após o Concílio [Vaticano II, 1962-65], com os seus escritos sempre atuais, visionários e proféticos, pediu muitas vezes uma interrogação sobre toda a possível perversão do Evangelho, mas a sua mensagem, pouco escutada então, caiu atualmente no esquecimento. Mas parece-me que é um dever, precisamente por causa da verdade do Evangelho, interrogarmo-nos hoje sobre essa questão, enquanto se enfurecem polémicas ferozes devido ao almoço com os pobres na basílica de S. Petrónio no qual tomou parte o papa Francisco na sua recente visita pastoral a Bolonha.

 

Tenho de ser sincero: desde há anos, a vários presbíteros que me manifestaram o seu projeto de preparar na igreja um banquete para os pobres, disse sempre que seria melhor que os pastores propusessem aos fiéis, que participam na Eucaristia dominical, que vivessem e cumprissem eles mesmos o gesto da caridade nas suas casas, convidando um pobre, alguns pobres, migrantes, últimos ou necessitados para a sua mesa, sobretudo em ocasiões de festas celebradas em família. Certamente que os presbíteros, com a sua presença, apoiariam as famílias na preparação e no acolhimento, individuando as pessoas a convidar e coordenando esta rede de hospitalidade “difusa”. Esta é a nossa posição, que procuramos também pôr em prática na nossa comunidade.

 

Mas se para mim, se para nós, monges, esta prática se impõe, é preciso dizer desde já que gritar pela profanação de uma igreja repleta de pobres que partilham a refeição é verdadeiramente um erro. O sacramento do pão e do vinho está estreitamente ligado ao sacramento do necessitado, e na Eucaristia não há só o Corpo do Senhor sobre o altar, mas também os seus membros que são sobretudo sofredores, pobres, esfomeados, oprimidos. Na Igreja nascida do Pentecostes, juntamente com a fração do pão [sacramento da Eucaristia] ocorria também a partilha de bens materiais, e se o apóstolo Paulo censura a comunidade de Corinto, acusando-a de «não celebrar a ceia do Senhor» (cf. 1 Coríntios 11, 20), isso não se deve certamente à ausência de fé eucarística ou à presença de pecadores no seio da comunidade, mas ao facto de que a Eucaristia era pervertida pela falta de reconhecimento do Corpo de Cristo nos pobres. Portanto há mais profanação onde não se dá de comer a um esfomeado do que onde se dá a comer aos pobres numa igreja.
 

Quanto aos testemunhos históricos, é preciso ser cauteloso e ler com inteligência as fontes. Temos atestações certas e claras de uma ceia ou de um almoço em que participam os pobres numa igreja dedicada ao culto? É verdade, com efeito, que sabemos de celebrações eucarísticas seguidas de uma ceia nas casas (os ágapes fraternos), antes da liberdade de culto que se seguiu à paz de Constantino, mas o que nos dizem os Padres em relação à questão que nos interessa? João Crisóstomo testemunha que na igreja os fiéis reunidos, depois de terem escutado a Palavra de Deus, tomavam todos parte nos santos mistérios. No fim da assembleia, em vez de regressarem logo a casa, convidavam os pobres e, sentados todos juntos à mesma mesa, preparada na igreja, comiam juntos os mesmos alimentos. Assim a mesa comum, a santidade do lugar e a caridade fraterna tornavam-se para cada um fonte inesgotável de alegria e de virtude (cf. In dictum Pauli: “Oportet haereses esse”, PG 51,257).

 

O papa Gregório Magno abriu as portas da igreja para fazer comer os pobres, é verdade que numa situação de grande dificuldade para a cidade de Roma. E Paulino de Nola testemunha que na basílica de S. Pedro «foi reunida uma multidão de pobres, os senhores das nossas almas (…), uma multidão de gente miserável que fluía em grandes fileiras até ao fundo da amplíssima basílica do glorioso Pedro». E pouco depois acrescenta: «Vejo estes pobres reunidos, divididos ordenadamente por mesas e saciados de comida abundante, tal como tenho diante dos olhos a abundância da bênção evangélica e a imagem daquela multidão que o próprio Cristo, verdadeiro pão e peixe de água viva, saciou com cinco pães e dois peixes» (Carta 13,11, CSEL 29, pp. 92-93).
 

À parte estes raros testemunhos, os Padres deixaram-nos a herança de uma visão dos pobres que por muito tempo a Igreja não destacou. Mas hoje, que chegou «a hora dos pobres» - segundo a expressão de João XXIII -, a Igreja, em particular o papa Francisco, grita profeticamente o Evangelho como bela notícia que tem como primeiros destinatários os pobres, os quais não só são evangelizados como podem evangelizar-nos. Permanece todavia verdade que os almoços dos pobres na igreja na história ocorreram raramente e em situações críticas, e que logo a Igreja teve de intervir para os proibir por causa de desordens ou da falta de discernimento do Corpo do Senhor. Só nos mosteiros do deserto temos notícias da celebração eucarística em dia de sábado e de domingo, seguida de uma refeição comum na igreja. Pode, no entanto, atestar-se que nas Igrejas ortodoxas, em algumas ocasiões, no fim da liturgia eucarística come-se em conjunto, ainda hoje, na igreja; é certo que não se trata de uma refeição no sentido pleno da palavra, com uma mesa abundante, mas partilha-se comendo festivamente alguma coisa em conjunto. E entre os ortodoxos ninguém pensa que se trata de uma profanação!

 

Em todo o caso, o Sínodo de Laodiceia (metade do século IV), legisla, no cânone 26: «Nas igrejas paroquiais e nas outras igrejas não é necessário celebrar aqueles que são definidos como ágapes nem comer ou preparar um banquete na casa de Deus», e o mesmo farão o III Concílio de Cartago (397) e o Concílio em Trullo (692); o episcopado africano pediu que nem bispos nem outros clérigos organizassem banquetes na igreja, salvo se fosse feito para dar de comer a pessoas de passagem, não podendo providenciar de outro modo à sua hospitalidade. Isto significa que pelo menos entre os séculos IV e VII a prática destas refeições na igreja continuou… Só as desordens e os possíveis danos à compreensão eucarística do Corpo de Cristo induziram a negligenciar o que tinha deixado de ser oportuno, deixado de ser segundo a ordem litúrgica, mas não se fale de profanação!
 

A intenção do arcebispo [de Bolonha] Matteo Zuppi e o consentimento dado pelo papa a esta iniciativa devem ser lidos com um olhar benevolente, não com um olhar mau (cf. Mateus 20, 15; Marcos 7, 22). Tratava-se, com efeito, de manifestar que a Igreja revive hoje o convite de Cristo a privilegiar os pobres; que a Igreja sabe hoje tocar o Corpo de Cristo na carne dos pobres e dos necessitados; que a Igreja deixa hoje que à sua mesa se sentem pecadores, doentes, frágeis, pequeninos… Não esqueçamos que os profetas alertaram severamente os crentes a não caírem na esquizofrenia entre serviço, culto prestado a Deus e serviço prestado aos irmãos, porque – como se lê na Primeira Carta de João - «quem não ama o irmão que vê não pode amar Deus que não vê» (4, 20). Talvez um tal gesto de acolhimento dos últimos entre as paredes de uma igreja possa “inquietar” as nossas consciências adormecidas, daquela saudável inquietação que nasce de cada sinal profético; parece haver aqui perfeita continuidade de espírito com quanto a “Didascalia” dos apóstolos, no século III, prescrevia aos bispos em matéria de acolhimento dos pobres no seio da assembleia litúrgica: «Se entrar [na igreja] um pobre, seja homem ou mulher, de tal lugar ou de uma outra comunidade, sobretudo se é idoso e não há lugar para ele, então tu, ó bispo, com todo o teu coração deves providenciar para que se encontre um lugar para ele, mesmo que tenhas tu de te sentar no chão» (II,58,6, ed. Funk I, pp. 168, 170).

 

No fim da vida, no dia do juízo, seremos julgados não por causa de presumíveis profanações sagradas, inventadas pelos homens, mas por gestos e omissões para com os irmãos e as irmãs necessitadas, porque o corpo de cada um deles é mais santo do que o templo de Jerusalém e do que qualquer outro templo ou igreja. Melhor será que o povo do Senhor Jesus Cristo compreenda que a Igreja é a casa dos pobres, que a Eucaristia é a ceia dos pobres, que partilhar o alimento é a bem-aventurança dos pobres, mais do que ter uma Igreja obsessivamente preocupada com o culto mas incapaz de discernir a presença dos pobres como sacramento de Cristo.

 

[©Enzo Bianchi]

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